terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Capítulo 5 – O início de uma jornada





Sarah notou que os músculos no rosto escamoso do dragão se contraíam. Ele apertou seus grandes olhos, como se analisasse os fatos. O animal, como sempre, caminhou até ela a passos lentos e sentou ao seu lado. Correu os olhos azuis para o teto da caverna , depois se voltou para a garota e disse:

- Isto é muito estranho... – fez uma pausa. – É como se vocês duas compartilhassem as mesmas lembranças e sentimentos. É difícil dizer se esta visão que você teve está relacionada com um passado já vivenciado ou se faz parte de um futuro próximo. De alguma forma, Elenwë se conectou a você. As chances de ela estar viva são mínimas, mas talvez seja possível sim.

- Como ela se ligou a mim?

- Talvez essa ligação tenha sido conseqüência de algum feitiço proibido.

- Entendi. Muito obrigada por tudo Kionnuhr.

O dragão esticou os lábios formando um leve sorriso enquanto fechava os olhos. Ele inclinou levemente a cabeça, e tocou-lhe o ombro com o focinho.

- Agora vá, cada minuto é precioso.

- Tudo bem, até logo.

- Até – despediu-se Kionnuhr.

Sarah fez uma reverência e foi ao encontro de Maya, que a aguardava próxima a entrada da caverna. Ao encontrarem o grupo do lado de fora, ambas explicaram a situação em que se encontravam. Disseram que teriam de se separar, pois Sarah deveria iniciar seu treinamento em breve. Maya pediu para que as levassem até o outro lado do lago Mun’raën e, um a um, os Endirvis embarcaram em suas canoas, e começaram a remar. Ao final da travessia uma forte brisa correu entre eles e Sarah notou um campo com vegetação rasteira.

A jovem agradeceu a Arian por toda a hospitalidade e aos Endirvis pela escolta até a caverna Duisternes. Maya, que passara todo o tempo segurando seu braço ferido se abaixou enquanto retirava um cantil – feito de pele de animal – que estava amarrado em sua cintura. Ela o abriu e encheu com água do lago. Depois, Sarah e ela passaram um bom tempo se despedindo dos amigos até que começaram a caminhar para longe, e desapareceram de vista.

- Para onde vamos? – indagou Sarah.

- Primeiro você precisa aprender a manejar a espada e os mais indicados para te ensinar são os Curiors.

- Curiors?Quem são eles?

- São criaturas semelhantes a humanos, só que eles têm uma cor de pele bem diferente e vivem nas montanhas Leeuw Tand que fica a uns quatro dias daqui.

Caminharam durante uns quarenta minutos e Sarah começou a sentir seu pé latejar. As pernas já não estavam mais tão fortes quanto antes e seus joelhos pinicavam. Quando chegaram ao pé de uma montanha, Maya gesticulou para que as duas dessem a volta. Agora havia um morro bem diante delas e ao longo dele, uma variedade de flores como: orquídeas e rosas, nas cores, branca e vermelha. Ao passarem pelo morro puderam ver que havia um monte de pedras, uma sobre a outra, de modo a lembrar o movimento de ondas.

A travessia por aquelas pedras era bem difícil, era íngreme e algumas vezes, quando Sarah apoiava o pé em uma delas, acabava derrubando várias pela ladeira que se formava – sorte não ter ninguém em baixo. Levou algum tempo para que ultrapassassem tal obstáculo, pois deveria ser feito com cautela. Quando finalmente chegaram ao outro lado, uma brisa suave refrescou seus rostos molhados de suor, trazendo-lhes certo alívio e calmaria. Não muito distante dali, podiam ver que pinheiros em diversos tamanhos se espalhavam por um vale onde havia duas montanhas.

- Falta pouco agora – disse Maya calmamente.

- Ainda falta?! – disse Sarah alterando a voz ofegante.

Ela não agüentava mais andar, neste momento sentiu falta de um carro ou bicicleta, mas sabia que estava longe de ter algo assim em Amagar. Mal conseguia sentir os pés, a todo instante as leves brisas traziam poeira que grudava em seu rosto suado. Estava imunda, com sede e muito cansada. Perguntava-se se Maya realmente dizia a verdade ou se ainda faltava mais um quilometro a percorrer. De qualquer forma, não adiantava contrariar, deveria se calar e seguir em frente.

O vale era bem mais fácil de atravessar pois não havia obstáculos, apenas grama, então logo chegaram às montanhas. Maya se aproximou de Sarah e retirou sua pele de tigre, entregando-a para a garota.

- Melhor colocar isso, vai precisar.

A animorfa se voltou para a montanha, esfregou as mãos em suas vestes e colocou o pé direito em uma das várias brechas que formavam a montanha, depois a mão esquerda um pouco acima da cabeça. Sarah arregalou os olhos e apertou a capa contra o peito enquanto corria os olhos pela montanha até o topo, que era praticamente impossível de se ver nitidamente devido à grande quantidade de neblina que o envolvia.

- Tá brincando né? – voltou-se novamente para Maya que já havia começado a escalar. – A gente tem que subir isso tudo?!

- Olhe pelo lado bom, suas pernas vão descansar para dar vez as mãos.

Sarah deixou o queixo cair enquanto observava o jeito sorridente e despreocupado da mulher, mesmo depois de todo o percurso que haviam feito ela não parecia cansada. A jovem amarrou a pele nas costas e puxou um capuz que pendia na parte de traz. Em seguida, se aproximou, enxugou as mãos e apoiou o pé na mesma brecha por onde Maya tinha passado. À medida que ia escalando, mesmo não olhando para baixo, Sarah tentava controlar o nervosismo que embrulhava seu estômago e deixava suas mãos ainda mais molhadas do que antes.

Deu uma parada e fechou os olhos enquanto apertava ainda mais a brecha em que estava agarrada. Respirou fundo. Olhou para cima e notou que Maya estava bem distante. Perguntava-se como ela conseguia subir tão rápido em um local tão íngreme. Era terrivelmente alto e qualquer passo em falso resultaria num acidente em que Sarah procurava nem pensar nas conseqüências.

Uma luz alaranjada, e mais quente do que qualquer outra durante o dia, envolvia o corpo de Maya. A animorfa colocou uma das mãos em uma superfície plana cheia de terra. Procurou deixar os pés na mesma altura e segurou firme uma pedra que se encontrava presa na superfície – que havia encontrado. Colocou um dos pés no ponto mais alto que encontrou e empurrou ao mesmo tempo em que puxava a pedra. Agarrou o chão com a outra mão e fez força para colocar o pé restante no topo. O suor escorreu pelo couro cabeludo e pingou no chão. Ela se virou, de modo a ficar frente a frente com a luz do sol. Depois, deitou-se e abaixou as mãos para que Sarah pudesse segurar.

- Venha, eu te ajudo.

Diferentemente de quando começaram a escalar, Maya agora parecia realmente cansada. Seu rosto brilhava de tanto suor e ela mordia os lábios inferiores. Sarah se aproximou um pouco mais e estendeu uma das mãos para agarrar a da animorfa. Estavam um tanto escorregadias, porém geladas. Quando conseguiu agarrar as duas mãos, subiu um dos pés de modo que estivesse na mesma altura do outro e usou como apoio para facilitar o trabalho de Maya.

Quando viu terra firme, Sarah deitou com a barriga para baixo, esticando as pernas e os braços dormentes. O coração inquieto agora começava a se acalmar e ela passou alguns instantes com os olhos fechados, sentindo o forte vento que cortava a montanha. Ouviu um som, como se algo se arrastasse pelo chão. Ao abrir os olhos sentiu uma ardência devido à luz do sol, mas notou que Maya se levantava.

- Tenho que ir caçar. Precisamos nos alimentar agora e guardar um pouco de comida para nossa viajem. Afinal, caminharemos bastante e não podemos sentir fraqueza – pegou o cantil e jogou ao lado de Sarah. – Beba um pouco, não muito. Ainda vamos precisar.

Maya saltou da montanha, e logo depois Sarah ouviu o piar de um pássaro. Uma águia sobrevoou o ambiente depois desceu. Ao chegar ao pé da montanha a animorfa se transformou em um leão da montanha. O belo animal ergueu a cabeça e cheirou várias vezes o ar. Olhou para além dos pinheiros com seus grandes e penetrantes olhos amarelos. O felino se encolheu e caminhou lentamente em direção a um cervo filhote que estava próximo a mãe.

O animal comia tranqüilamente a grama. Maya chegou bem perto. A mãe do pequeno cervo ergueu as orelhas e correu os olhos negros pelos pinheiros, sempre atenta. Maya chacoalhou calmamente seus ombros e quando o animal abaixou a cabeça, ela deu um salto veloz em direção a eles. Instintivamente, a cerva deu um leve toque com o focinho em seu filhote e correu para longe com o pequenino bem atrás. A animorfa estava exausta, mas tinha de conseguir alimento antes do anoitecer.

Suas grandes patas se moveram ainda mais rápido e ela se lançou sobre a cerva. Dando-lhe uma mordida brutal no pescoço. O animal morreu imediatamente. Sem a presença da mãe o filhote ficou um pouco confuso, sem saber que direção tomar, tornando-se uma presa ainda mais fácil. Maya, ainda em sua forma de felino, abocanhou o corpo do cervo menor e o levou até o pé da montanha.

Ela deu um salto e cravou suas garras nas brechas. O porte do animal em que estava transformada e as garras auxiliavam bastante durante a escalada e não demorou mais do que uns vinte minutos para que chegasse onde Sarah estava. A garota estava encostada em uma parede com as pernas esticadas e os olhos fechados, parecia realmente muito cansada. A animorfa se aproximou e colocou o cervo no chão com uma pancada abafada. Sarah abriu os olhos de forma rápida e ao notar o pequeno animal ensangüentado estirado no chão, arregalou-os.

- Eu já volto – disse Maya, saltando novamente da montanha.

Sarah nunca tinha visto um animal morto antes. Aliás, nunca tinha visto qualquer outro ser morto. Era triste ver uma criaturinha daquele tamanho com tanto sangue escorrendo por seu dorso. Apesar de ser filhote, seus olhos negros eram bem grandes e tinham um brilho incomum e triste. A jovem sentiu um caroço se formar em sua garganta. Em que mundo maluco ela tinha caído. Um lugar onde as pessoas caçavam pra sobreviver, um mundo onde ainda havia escravidão, e bruxos, e humanos conviviam com dragões. Era difícil para ela se acostumar com aquilo.

Procurou desviar seu olhar do cadáver do cervo e observou o pôr-do-sol no horizonte. Aos poucos, o suor que antes envolvia seu corpo, desaparecia. Quanto mais o anoitecer se aproximava mais frio era o ambiente e depois de ter caminhado tanto, Sarah sentia suas pálpebras ficarem cada vez mais pesadas e começavam a se fechar involuntariamente. Durante o breve momento que descansou os olhos, ouviu um baque abafado. Maya havia lançado outro cervo, só que este era maior do que o que trouxera antes.

Quando a animorfa se aproximou do cervo menor, finalmente voltou para sua forma humana. Sarah não pôde evitar que seu rosto se contraísse ao ver os lábios carnudos da mulher cheios de sangue. Maya apanhou o cantil que estava próximo da garota e colocou um pouco de água na boca, chacoalhou e cuspiu para longe. Derramou um pouco do líquido na mão e passou sobre os lábios avermelhados pra que eliminasse os vestígios de sangue. Tampou o cantil e o amarrou na cintura.

- Estou exausta – disse ela sorrindo enquanto sentava ao lado de Sarah.

- Num é pra menos, foi um dia muito cansativo.

- Ainda não acabou – Sarah lançou-lhe um olhar fulminante. – Calma, não é o que você está pensando. Sabes fazer fogo?

- Sei, por quê?

- Pode fazer, por favor?

- Posso, mas preciso de gravetos.

Maya olhou em volta.

- Aqueles servem? – indagou, apontando para uma pequena quantidade de gravetos espalhados.

- Servem.

Sarah ficou de pé e caminhou em direção aos pedaços de madeira, pegou uma boa quantidade deles e voltou a se sentar.

- Nenhum deles é grosso o suficiente para fazer furos.

- Fazer furos?!Para quê? – indagou Maya, espantada.

- Ué, para fazer o fogo.

- Nós usamos pedras – abriu a bolsa de couro que tinha na cintura e retirou duas pedras de tamanho médio. – Pegue – disse ela as entregando para Sarah. – Quando se vai viajar para uma montanha onde é difícil encontrar pedras como estas, tem que vir prevenida.

- Como vou fazer fogo com isto?

- Pensei que tivesse dito que sabia fazer.

- Eu sei fazer fogo, mas não desse jeito – respondeu a jovem. – Meu método é bem mais prático.

- Junte os gravetos e bata uma pedra contra a outra sobre eles. As faíscas vão fazer o resto.

Maya observou o olhar engraçado que Sarah lançava para as pedras, enquanto caminhava até o cervo menor. Ela desembainhou sua adaga e pegou um punhado do couro do animal, depois perfurou um pedaço e puxou com força, pra que pudesse arrancar toda a pele que segurava. Lançou o couro que havia arrancado para longe e pegou mais um pouco. A carne vermelha e um tanto engordurada do cervo estava à mostra. A animorfa notou que Sarah a observava de soslaio, com os olhos apertados.

- Não pense que gosto de fazer isso – disse rapidamente sem parar o que estava fazendo. – Mas é uma questão de sobrevivência, para comer carne temos que matar animais vivos. Geralmente preferia comprar em algum açougueiro, mas estamos muito distantes de qualquer outra coisa que não sejam pinheiros e montanhas.

- Só fico me perguntando como você consegue fazer algo assim com tanta calma – comentou a jovem enquanto batia uma pedra contra a outra na esperança de ver ao menos uma faísca.

- Costume – respondeu Maya lançando outro pedaço de pele para longe. – Para chegar à floresta Flóriur da terra dos bruxos eu precisava caminhar bastante. Claro que na forma de um animal é bem mais rápido, mas não o suficiente para chegar em um dia, então eu tinha que caçar... – fez uma pausa. – Um dia você também vai se acostumar.

- Nunca – respondeu Sarah rapidamente. – Não quero ter que fazer algo tão nojento.

Maya deu uma gargalhada baixa.

- Mas algum dia vai ter que fazer se quiser sobreviver. Assim como também terá que matar.

Sarah sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha só de pensar que algum dia teria de matar alguém. Com o olhar um pouco distante, ela apertou as pedras que segurava de modo que as pontas dos dedos ficaram brancas. Fechou os olhos e balançou a cabeça como se procurasse despertar. Depois começou a batê-las, uma contra a outra, produzindo leves faíscas que saltavam sobre o amontoado de galhos. Havia uma pequena folha em um dos galhos e ao queimar, a chama se prolongou até os outros gravetos e a fogueira se formou.

Feliz, a jovem se voltou para Maya com um leve sorriso estampado no rosto. A pele morena de Sarah ficou branca depois do que viu: a animorfa abrira um buraco na barriga do cervo e à medida que retirava os órgãos do animal, os enterrava. Sarah levou uma das mãos até a boca e se voltou para o lado oposto.

Maya cortou cada pedaço de gordura do cervo, depois fatiou a carne em diversos pedaços grandes. Enxugou as mãos ensangüentadas na roupa, depois retirou a bolsa da cintura e a abriu. Pegou um trapo que guardava nela e o esticou no chão, apanhando a carne e a envolvendo no pedaço de pano. Em seguida, guardou-a na bolsa e empurrou para longe. A animorfa puxou o cadáver do cervo maior e começou a fazer o mesmo que fizera com o anterior.

- Melhor você descansar um pouco, vai demorar pra que a comida fique pronta.

Sarah criou coragem para olhar na direção da mulher.

- Não sei se ainda quero comer – disse ela calmamente.

- Ora vamos, deixe de bobagens – arrancou um grande pedaço de pele e jogou para longe. – Quando chegarmos ao topo da montanha, vai se arrepender de não ter se alimentado.

A garota engatinhou até a parede mais próxima e se encostou. Retirou a pele de tigre que usava nas costas e colocou sobre o corpo, estava cada vez mais frio no alto da montanha e ela já começava a notar que as unhas ficavam roxas. Ao olhar para cima, percebeu um rápido feixe de luz correr pelo céu negro da noite. “Uma estrela cadente!” – pensou. Sarah fechou os olhos desejando que pudesse algum dia, voltar para casa e tornar a ver sua família e amigas.

Abriu-os. “Que bobagem a minha, fazer um pedido para uma pedra que se desintegra na atmosfera do planeta”. Devo estar mesmo desesperada.” – pensava ela enquanto abria um leve sorriso. Suspirou, observando a fumaça branca que saía de seus lábios. “Puxa, está mesmo frio aqui”.

Quando finalmente terminou de cortar a carne em pequenos cubos, Maya pegou um dos gravetos que queimavam na fogueira e, com pequenas batidas no chão, apagou a chama. Depois espetou a carne nele e colocou sobre o fogo. Seus olhos azuis brilhavam ao observar, constantemente, o crepitar das chamas. Ela estendeu o braço ferido. Apesar de ter tratado do machucado com ervas medicinais, ainda assim ardia muito e a escalada só havia piorado a dor.

- Sarah – disse ela estendendo o graveto com a carne assada. – Coma.

A jovem observou a comida. Mesmo depois de ter visto como Maya tratava da carne, a maneira com a qual a mulher arrancava a pele do pequeno animal para que pudesse servir de alimento para elas. Ainda assim não perdera o apetite. Estava exausta e seu estômago roncava como nunca. Deu uma mordida na carne mal passada, estava bem quente pois estivera em contato direto com as chamas, mas queimar a língua não era nada perto da fome que sentia.

Mastigando de forma selvagem e engolindo o mais rápido que podia, Sarah notou que a animorfa estava de frente para a fogueira com as mãos estendidas de modo que as aquecesse. Sua expressão era impassível e despreocupada. Ela observava as chamas envolvendo a carne que colocara na fogueira. Os olhos azuis, que faziam força para se manterem abertos, brilhavam mais do que nunca. De certa forma parecia cansada. O olhar de Maya se voltou para Sarah.

- O que foi?

- Nada – disse a jovem engolindo o pedaço de carne. – Só estava me perguntando como você vai se aquecer. Já que me deu sua capa.

- Não se preocupe com isso – respondeu ela ensaiando um sorriso. – Posso virar um animal que possa se aquecer lembra?

- Como uma ovelha?

- Engraçadinha – disse ela dando uma risadinha sarcástica. – Por que não tenta dormir?

Ao terminar de mastigar o último pedaço de carne, Sarah deitou de forma lenta e puxou a capa de tigre até o pescoço. Seus olhos ardiam, os pés ainda estavam dormentes e o frio aumentava ainda mais sua exaustão. Bastou fechar os olhos e a jovem caiu em um sono profundo. Sem pensamento algum, apenas uma escura imensidão e uma sensação relaxante incomparável.

- Vraldres (não demorou) – murmurou Maya.

Ela retirou a carne do fogo e observou o céu enquanto dava uma mordida. Nuvens acinzentadas que revestiam a abóbada celeste ausente de estrelas, davam-lhe um ar sombrio. A lua cheia estava completamente visível. Maya engoliu a comida de forma vagarosa enquanto fechava os olhos e sentia o vento frio beijar-lhe o rosto. Era uma sensação muito boa para quem passara o dia inteiro escalando uma montanha e sendo castigada pela fadiga e pela sujeira que estava impregnada em todo o seu corpo. Após alguns minutos, quando finalmente conseguiu terminar de comer, ela se deitou e adormeceu.

Quando a aurora tocou a montanha, a animorfa levantou lentamente enquanto erguia os braços, emitindo um som de satisfação. Não muito longe dela, Sarah dormia tão profundamente que parecia estar morta. Maya balançou a cabeça e pôs-se de pé. Colocou a mão sobre o ombro da jovem, agitando-o para que ela acordasse, mas não teve resultado. Pegou o cantil preso à cintura, abriu-o e jogou um pouco da água sobre o rosto de Sarah que deu um salto.

- Hora de acordar – disse a animorfa sorrindo.

- Que modo de acordar alguém – disse Sarah enxugando o rosto com as costas do braço. – O sol ainda está nascendo.

- É a hora perfeita, vamos, levante!

Naquele momento, a jovem sentiu uma vontade tremenda de saltar sobre o pescoço de Maya. Como se não bastasse terem passado o dia inteiro caminhando e ainda por cima dormirem tarde. Acordar quando o sol ainda nascia aumentava ainda mais sua exaustão. Sarah mal conseguia abrir os olhos, mas conseguiu ficar de pé e vestir a capa de tigre, esfregando o peito na esperança de se manter aquecida. Ela deu leves tapas nas bochechas enquanto arregalava os olhos, tentando desembaçar sua vista cansada.

- O que está esperando?! – a voz de Maya ecoou.

A animorfa estava já estava no alto e a forte neblina que envolvia o pico da montanha, começava a esfriar seu corpo. Sarah levou um susto, perguntava à si mesma como alguém poderia ter tanta disposição. Caminhou até a brecha da montanha de forma vagarosa e começou a escalar. Maya estava parada, apenas aguardando que a jovem a alcançasse, o que não demorou mais do que alguns minutos.

Sarah sentia suas mãos começando a suar e ficou com uma vontade imensa de olhar para baixo, mas o medo do que poderia acontecer a segurou. À medida que escalava, a jovem sentia que a temperatura despencar assustadoramente. Estava terrivelmente frio. As juntas dos seus dedos começavam a pinicar era como se pequenas agulhas furassem sua pele. A impressão que ela tinha era que, aos poucos, perdia o movimento dos dedos. Estava sem força para se segurar.

A carne, sob suas unhas, estava roxa. Já se encontravam a mais ou menos seis metros de altitude se contados do local onde haviam parado pela última vez. Ela sentia como se suas energias estivessem sendo drenadas por causa das pontadas espalhadas por seu corpo. Pressionou o corpo contra a parede da montanha, segurando com toda a força que ainda lhe restava, seus lábios roxos tremiam e os olhos reviravam involuntariamente.

- Sarah? – chamou a animorfa ao notar o jeito estranho da companheira.

O corpo inteiro pinicava e a jovem sentia como se suas energias estivessem sendo sugadas. O ar gelado que invadia seus pulmões tornava cada vez mais incômoda a tentativa de respirar. Não agüentava mais. Aos poucos, suas mãos começaram a soltar a parede e seus olhos se fecharam.

- Não faça isso Sarah! – berrou.

Em uma fração de segundos, Maya saltou e agarrou o braço da jovem ao mesmo tempo em que retirava sua adaga, enfiando-a em uma brecha na montanha. As duas agora estavam penduradas e qualquer movimento em falso resultaria em uma morte terrível. Sarah teve uma vertigem ao abrir os olhos e não conseguia se mover, nem se quisesse. A animorfa olhou ao seu redor ignorando o incômodo, que uma gota de suor em seu rosto, trazia.

- Consegue se segurar? – indagou.

- Posso tentar – ela respondeu.

- Muito bem, vou balançá-la até ali e você vai tentar se segurar. Pronta?

- Quando quiser.

Maya apertou a adaga e começou a balançar o corpo de Sarah. Ao soltar, com um rápido movimento, a jovem se agarrou à parede da montanha. A tenção tinha sido tão grande que seu corpo agora estava mais aquecido, pelos breves segundos que correram no momento em que esteve no ar, achou que iria morrer.

- Não importa o quanto o frio tente te derrubar, não se deixe vencer ou estará morta – disse a animorfa em um tom de voz grave.

O dia demorava mais a passar, os minutos pareciam horas até finalmente chegaram ao topo da montanha. O frio lá era ainda mais insuportável. Grossas camadas de neve formavam um tapete branco que se estendia por toda parte. Nevava muito e o ambiente era úmido por causa da neblina que envolvia o pico da montanha. Maya Entregou sua bolsa à Sarah e se transformou em uma raposa do ártico, a cauda era felpuda e seu pêlo tão branco quanto a neve, deveria ter entre cinqüenta e sessenta centímetros.

- Por aqui – disse ela começando a caminhar.

Após alguns metros, o animal estava completamente camuflado. A única coisa que Sarah identificou foram os olhos azuis que se voltaram para ela. A jovem seguiu o quadrúpede que se movimentava graciosamente sem nem mesmo afundar naquela neve tão densa. Ela apertou as abas da pele de tigre contra o peito, procurando se aquecer. O vento urrava e sua respiração estava bem mais acelerada do que durante a escalada, era como se tudo o que seu corpo fazia fosse uma tentativa de se manter aquecido. A raposa do ártico ergueu o focinho, movendo-o de um lado para o outro.

- Vamos descansar aqui.

- Minhas três palavras preferidas – disse Sarah. – Não há nada aqui que possa fazer uma fogueira, como vou me aquecer?

- Não se preocupe.

A animorfa se transformou em um tigre da neve e se aproximou da jovem.

- Sente-se – Sarah obedeceu.

Maya andou em círculos, deitando-se atrás da garota.

- Eu a manterei aquecida. É só deitar sobre mim.

À medida que o tempo passava o ambiente ficava cada vez mais suportável. O pêlo da animorfa era quente e de certa forma, logo conseguiram dormir. Várias vezes durante a madrugada, o sono de Sarah era interrompido pelo som aterrorizante que vento produzia. Quando despertou pela quarta vez, decidiu se levantar. Seus lábios estavam roxos e tremiam de forma rápida. Ela estendeu a mão e balançou o corpo do tigre das neves.

- Agora é a minha vez de acordar você – disse Sarah, sorrindo. – Vamos Maya já descansamos o suficiente.

O animal deixou um ronronar, um tanto alto, escapar, e aos poucos voltou para a forma de raposa do ártico. Maya cambaleou um pouco até finalmente estar acordada. Ela farejou o ar e começou a caminhar, com Sarah em seus calcanhares. Após algumas horas a jovem começava a sentir certa impaciência, revirando os olhos enquanto observava as pegadas profundas que deixava na neve.

- É ali – disse Maya.

Sarah fez uma pausa, apertando os olhos na tentativa de ver alguma coisa. A neblina se afastava, dando um pequeno espaço, onde uma ponte de madeira podia ser avistada. Ela abriu um sorriso e começou a correr, de certa forma era bastante difícil, suas coxas começavam a latejar, mas a vontade de encontrar cama e comida quentinha era muito maior. Correr na neve era muito mais difícil do que correr na areia da praia, definitivamente.

- Espere Sarah! – berrou a animorfa enquanto tentava alcançar a garota.

Ao chegar à ponte, a jovem ficou mais cautelosa, colocando um pé na frente do outro de forma vagarosa. Era uma daquelas pontes frágeis e bambas que um passo em falso resultaria em morte na certa. A jovem pôde ver que a entrada da cidade se parecia com um forte. Seus muros eram feitos de uma madeira bem resistente e no final delas haviam pontas bastante afiadas, que lembravam estacas. No topo dos portões – feitos do mesmo material do muro – havia duas torres de vigilância onde guardas vestindo um punhado de roupas felpudas, seguravam enormes lanças.

Sarah estava boquiaberta com o tamanho daquela construção, no meio do nada. Não demorou muito para que Maya a alcançasse, ela se aproximou da entrada e um homem coberto da cabeça aos pés atravessou os portões, indo de encontro as duas. Ele caminhava cautelosamente com a ponta da lança virada para elas.

- Se quiser fazer com que os Curiors gostem de você, seja uma boa aprendiza. – sussurrou Maya.

- Alto!Quem vem lá? – indagou o homem.

A animorfa voltou a as forma humana com um sorriso estampado no rosto.

- Pelos deuses! – disse ele abaixando a lança. – O que quer aqui Maya? – indagou rispidamente.

- Também estou feliz em ver você Rhotur – ela respondeu enquanto voltava à forma de raposa do ártico. – Viemos aqui porque Sarah precisa treinar...

- Não treinamos qualquer um e você sabe disso!

- Mas ela não é qualquer uma. É a nova Esbael.

Por causa das roupas, Sarah não pôde identificar a expressão no rosto do homem, mas o silêncio indicava enleio.

- Como saberei se está falando a verdade? – disse ele calmamente.

Sarah afastou a pele de tigre que cobria seu pulso e caminhou em direção a ele. Rhotur olhou para os homens na torre de vigilância e assentiu para que abrissem os portões, ele olhou para as duas e enquanto estendia a mão em direção à cidade disse:

- Bem vindas à Teralar.

Capítulo 4 – Kionnuhr, o guardião da profecia



Ao sentir a veemência das palavras da Endirvis, Sarah sentiu um súbito frio na boca do estômago e levantou de forma rápida. Ouviu o farfalhar das folhas ao longe e notou que alguns galhos despencavam das árvores. Perguntou-se que tipo de ser, que caminhasse sobre árvores, causasse tamanho estrago. Sob os gritos de Arian, todos começaram a colocar as canoas de volta no rio. Uma brisa cortante beijou-lhes o rosto no momento em que Arian fora lançada na água. A mulher lutou contra a correnteza até que conseguiu se segurar na margem. Ao sair do rio, completamente encharcada, tentou ignorar o frio que praticamente impedia sua locomoção, colocou as mãos em forma de concha nas bochechas e gritou:

- Você está bem?

- Estou – respondeu Sarah – O que foi aquilo?

- Pela velocidade do ataque, provavelmente Muirakans! – respondeu Arian – Protejam-na! – ordenou ela enquanto mergulhava novamente no rio e nadava até o lado em que Sarah e seus companheiros estavam. – Temos que sair daqui, agora!

Os Endirvis entraram nas pequenas embarcações, logo em seguida. Quando Sarah colocou um dos pés dentro da canoa um dos Muirakans saltou sobre ela e com um movimento rápido, Arian desembainhou sua adaga e a enfiou na cabeça da criatura que soltou um gemido estridente que machucaria os tímpanos de qualquer um. Todos cobriram seus ouvidos até a criatura cair morta espalhando seu sangue negro pelo chão. Arian ajudou Sarah a se levantar e ambas tentaram entrar nas canoas, mas viram-se cercadas por quatro das criaturas, que haviam surgido de repente.

- Saiam daqui! – berrou Arian para os companheiros.

- Mas e vocês? – perguntou um deles.

- Daremos um jeito!

Com uma expressão de culpa em seus rostos, eles apertaram os remos de modo que as pontas dos dedos ficaram brancas e começaram a remar até que desapareceram de vista. Sarah reuniu toda a coragem que tinha guardada dentro de si e desembainhou sua adaga, colocando em seguida sua mochila para frente, de modo que o livro ficasse seguro. As terríveis criaturas chifrudas exalavam um odor podre, que a deixava atordoada, ao se aproximarem lentamente.

- Fique atrás de mim! – ordenou Arian protegendo a Esbael.

Com a distância que os Muirakans estavam delas, não haveria mais como escapar. “É o fim!” – pensou Sarah. Uma das criaturas ergueu sua garra, preparando-se para o ataque, quando foi interrompida por um rugido estrondoso. Os monstros se viraram rapidamente, de modo a ficarem de costas para Arian e Sarah, balançando as cabeças à procura da origem do som. Um par de olhos reluzentes surgiu sobre a copa de uma das árvores e uma pantera negra saltou sobre uma das criaturas, sua boca repleta de dentes abocanhou a cabeça do inimigo e com um puxão brutal arrancou uma parte do couro, matando-o.

O animal ficou frente a frente com os Muirakans, enquanto apertava seus grandes olhos amarelos, observava cada passo atentamente, ao mesmo tempo em que protegia Arian e Sarah. Os monstros tentaram atacar, mas a pantera bloqueava cada golpe com uma forte patada enquanto mostrava seus dentes compridos e afiados. O animal caminhou lentamente para trás de modo que as duas recuassem em direção ao rio, até que caíram. Neste momento as três criaturas restantes tentaram agarrá-las, mas com uma velocidade surpreendente, a pantera matou um deles com diversos golpes consecutivos no peito e imobilizou os outros dois. Sarah e Arian só conseguiram ver o animal lutar contra os monstros enquanto eram levadas pela correnteza.

Apesar de estar tomada pelo cansaço, Arian nadou com o pouco de força que ainda lhe restava, segurando Sarah com uma das mãos para indicar o caminho. Com o auxílio da correnteza, não demorou muito para que encontrassem as canoas. Os Endirvis as ajudaram a embarcar e ambas respiraram aliviadas por terem escapado da morte. Sarah espremeu o cabelo e passou a mochila – que antes estava na parte da frente de seu corpo – para as costas. Ela pegou um remo e ajudou os companheiros a mover a embarcação.

- Aquela – fez uma pausa – É Maya não é?

- É – respondeu a Endirvis desviando sua atenção para o topo da corredeira, onde antes estavam. - Espero que ela esteja bem – disse em um tom de voz triste.

Domados pelo cansaço, que as poucas horas de sono haviam produzido, todos remavam com determinação para que pudessem chegar à caverna o mais depressa possível e sem dormir, para que não fossem novamente surpreendidos. Arian sentia uma onda de sensações ruins no peito. A angústia, de esperar Maya dar um sinal de vida, se misturava ao peso terrível que sentia em suas pálpebras, que se fechavam involuntariamente. As horas que se seguiam pareciam ser eternas.

Sarah notou que as margens do rio, aos poucos, tornavam-se grandes penhascos – como Arian havia lhe dito que aconteceria. Quando finalmente chegaram ao lago, os raios do sol cobriram suas águas com um mesclado de amarelo, laranja e vermelho. Apenas uma mancha negra se destacava no pé da montanha e Sarah viu, era lá, a caverna Duisternes. Finalmente haviam chegado. A jovem abriu um largo sorriso ao se lembrar que Kionnuhr a diria como voltar para casa, mal podia esperar. Não agüentava mais ficar naquele mundo onde corria risco de vida todo instante.

Depois de algum tempo, finalmente haviam atracado na entrada da caverna. Sarah deu um longo suspiro, aliviada. Olhou o percurso que haviam feito. A corredeira ficava no meio da grande fenda – que estava à esquerda da jovem. O lago era belíssimo quando iluminado pelos raios do sol e o silêncio do ambiente era quebrado, apenas pelo choque de gotas d’água com o chão que ecoavam pela caverna. Concluiu que só um louco moraria em um lugar úmido e escuro como aquele.

- Sugiro que descansemos aqui enquanto Maya não chega – disse Arian.

- Mas e se aquelas criaturas voltarem? – indagou Sarah.

- Não vão voltar – afirmou a Endirvis – Elas só aparecem durante a noite.

- Entendi, tudo bem então.

Aos poucos, todos começaram a se acomodar no chão, alguns deitados, outros, sentados. As roupas de Sarah ainda estavam um pouco úmidas e ela abraçou o peito enquanto esfregava os braços, na tentativa de reduzir o frio que sentia. A jovem observou que Arian estava sentada com os pés dentro da água, sem nem mesmo se mexer. De certa forma parecia aflita. Sarah engatinhou até a mulher e perguntou:

- O que foi?Está preocupada?

- Conheço Maya desde que éramos crianças, ela é como uma irmã para mim – desviou o olhar do lago para Sarah. – Se não sentisse nada agora, seria fria e insensível.

- Não se preocupe, ela vai ficar bem. Não a conheço tanto quanto você mas pelo modo com que ela matou aqueles monstros, com certeza está à salvo.

- Tomara – seu olhar se voltou novamente para o vazio. – Antes de Oberon governar Endirvis, bruxos e humanos viviam juntos, mas quando ele destruiu nosso antigo lar, cada um de nós passou a viver por conta própria. Maya passou um tempo sem me ver, mas quando cresceu mais um pouco, vivia andando por essas terras e sempre passava para ver como eu estava. Foi aí que vi que a distância não separa amigos, não aqueles que realmente se amam.

- Por que não descansa um pouco? Eu fico aqui para recebê-la.

- Não, tudo bem.

- Tem certeza?

- Sim, tenho.

- Então fico aqui com você.

Sarah enfiou os pés dentro da água mordendo os lábios ao sentir o contato do líquido frio com suas pernas que já haviam aquecido.

- Não precisa pode ir descansar.

- Eu quero – disse ela abrindo um sorriso.

A jovem apoiou as mãos no chão e deslizou o olhar pelo céu azul-celeste, observando as formas das diversas nuvens que o decorava.

- Olha só aquela nuvem! Parece um coelho – disse Sarah, sorrindo.

Arian apertou os olhos como se tentasse enxergar algo.

- Um pássaro!

- Para mim parece um coelho.

- Não – ficou de pé e com o dedo indicador apontou: – Um pássaro!

Um pequeno animal voava em direção à elas com uma das asas, enquanto tentava manter a outra ativa. Arian estendeu as mãos para que pudesse amortecer a queda. O pássaro não parava de piar e seu coraçãozinho batia rápido contra o peito. A Endirvis se ajoelhou e colocou cuidadosamente o frágil animal no chão. Devagar, a forma do pássaro começou a mudar e Maya surgiu.

A animorfa estava ofegante e segurava um dos braços, completamente ensangüentado. Gotas de suor escorriam por seu rosto. Sarah pôde ver que as bochechas de Maya se movimentavam de modo frenético, como se a dor fosse sufocante. A animorfa engoliu em seco e movimentou a mão ensangüentada, cujas gotas de sangue manchavam o chão, até um pequeno saco de couro que estava amarrado em sua cintura e o entregou à Arian.

A Endirvis retirou algumas ervas do saquinho, colocando-as no chão e com o punho de sua adaga, amassou-as. Depois, pegou um pouco da pasta verde formada e passou sobre o ferimento de Maya. Quando terminou, mergulhou as mãos nas águas do lago e olhou em volta. Havia uma planta que crescia próxima à entrada da caverna. Arian arrancou a maior folha que encontrou e a envolveu no braço da amiga.

Maya contou que os Muirakans estavam em diversos lugares próximos à floresta e procuravam Sarah por ordem do rei, por isso havia demorado a encontrá-las, tentava ao máximo atrasar a chegada das criaturas, mas elas estavam em maior número e as que restaram vieram ao encontro do grupo. A animorfa também descreveu em detalhes a luta com os Muirakans, contou que no momento em que ela saltara para segurar os dois últimos, um deles tentou enfiar a lâmina que tinha embutida no pulso bem no braço dela, mas ela conseguiu desviar fazendo apenas um corte não tão profundo e que neste momento, em sua agonia, ela os destruiu brutalmente. Acrescentou que havia demorado a chegar porque seu braço doía demais e ela teve de tomar coragem para usá-lo durante o vôo.

O silêncio tomou conta do lugar. Durante as horas que se seguiram as três procuraram descansar ao máximo, afinal, a noite havia sido longa. Maya adormeceu encostada à parede na entrada da caverna e seu braço ferido repousava sobre a perna. Sarah permaneceu acordada, estava ansiosa demais para falar com Kionnuhr e descobrir uma maneira voltar para casa. Agitava os pés, que permaneciam sob a água, constantemente.

Com o passar do tempo, Sarah notou que o ambiente começava a ficar mais frio e deduziu que demoraria algumas horas para que o pôr-do-sol chegasse. Decidiu que o melhor a se fazer era acordar o grupo antes que anoitecesse e aquelas criaturas monstruosas voltassem a atacá-los. Sarah pôs-se de pé e, lentamente, começou a cutucar cada uma das pessoas. Arian bocejou enquanto esticava os braços, depois caminhou até a margem do lago, enfiou as mãos na água e jogou sobre o rosto.

Balançou as mãos, para que secassem com mais facilidade, e gesticulou para que todos a seguissem. Sarah observou a entrada. De certo modo aquela caverna escura a deixava um pouco assustada. A jovem respirou fundo e entrou a passos apressados, seguindo o grupo. Um cheiro estranho que lembrava mofo circulava pelo ambiente úmido e uma brisa quente beijava-lhe o rosto. No fundo da caverna havia algumas tochas presas à parede que iluminavam um portão enorme, que aparentava ter uns dez ou doze metros de altura.

Sarah se perguntou o porquê de uma entrada tão grande dentro de uma caverna. Ela notou que Arian caminhava até o portão e quando chegou há certa distância se ajoelhou. Ao ver que todo o grupo a acompanhava, a jovem fez o mesmo.

- Oh Kionnuhr o sábio, uma nova Esbael surgiu e ela necessita de tua sabedoria – Arian fez uma pausa – Por favor, precisamos de sua ajuda.

Um rangido ecoou pelo lugar e o enorme portão começou a se abrir de forma vagarosa. Sarah sentiu um tremor no chão e alguma coisa começou a sair do portal. “O que mais pode ser pior do que tudo o que já vi por aqui?” – pensou Sarah engolindo seco. Uma coisa redonda com três garras pousou no solo. A imagem era nítida agora, um enorme dragão dourado surgiu e caminhou calma e graciosamente pela caverna. O magnífico animal olhou para Sarah de soslaio. A jovem pôde ver o peito do quadrúpede, subir e descer, como se ele houvesse respirado fundo.

“Que diabos é isso?!Algum tipo de cão de guarda?” – pensou Sarah. O animal deitou em frente à Arian causando um tremor ainda maior do que os produzidos por suas passadas e a observou com um olhar penetrante. O rosto do dragão era bastante largo em seu maxilar o que deixava suas feições bem rígidas e masculinas. Tinha alguns espinhos ao redor do queixo e dois grandes chifres sobre a cabeça com pontas recurvadas. A luminosidade trazida pelas tochas fazia com que as escamas do seu corpo brilhassem tanto quanto ouro.

- Em que posso ajudá-los, pequeninos? – disse o dragão docemente.

- Ele fala! – berrou Sarah pondo-se de pé.

O dragão olhou para ela e riu de modo abafado.

- Mas é claro que falo querida – disse Kionnuhr carinhosamente. – É você a nova Esbael?

- É ela sim, Kionnuhr – disse Maya.

- Aproxime-se criança.

Sarah ficou paralisada. Ela estava bem distante do animal e ele já era enorme, imagina só se chegasse mais perto! A idéia não a agradava nem um pouco. A jovem recuou, mas Maya, que estava logo atrás, colocou a mão em suas costas e deu um leve empurrão. Sarah caminhou devagar em direção ao dracônio e este a observou por alguns segundos.

- Poderiam nos deixar a sós? Creio que esta garota tem muitas dúvidas em seu coração para serem preenchidas.

O grupo fez uma reverência e se retirou.

- Sente-se minha jovem – Sarah obedeceu – Então, o que quer saber?

- Bom, eu não sou deste mundo, sou de ou...

-... Eu sei disso – interrompeu o dragão.

- Sabe?! – espantou-se Sarah.

- Sou o guardião da profecia minha jovem e você faz parte dela... – fez uma pausa. – Um pouco antes de Elenwë, a guardiã que veio antes de você, morrer. Uma profecia surgiu nos pergaminhos sagrados e ela dizia que uma nova guardiã viria de outro mundo e nomearia um novo protetor, para salvar todos que habitam este mundo. – explicou o dragão.

- Uau – disse Sarah com um olhar distante. –, a única coisa que eu quero saber é como faço para voltar para casa.

Kionnuhr correu seus olhos azuis pela caverna até pousá-los novamente sobre Sarah.

- Sinto muito – fez uma pausa – Não poderá voltar.

Sarah sentiu como se houvesse sido empurrada em um poço sem fundo, não era possível que uma coisa dessas estivesse acontecendo com ela. De repente sua saliva começou a faltar e seu coração palpitava de forma rápida contra o peito. Logo agora que havia finalmente se acertado com Regina e que, tinha certeza, seriam amigas de novo uma tragédia dessas aconteceu. Não, não era possível, devia ter alguma maneira de ela voltar para casa, mal podia acreditar que estivesse condenada a permanecer naquele mundo pelo resto de sua vida, enquanto a seus pais deveriam estar angustiados a sua procura. Ela respirou fundo, procurando conter suas emoções para que não chorasse naquele exato momento.

- Como assim não posso voltar?

- Você agora é uma Esbael, e sendo uma você faz parte deste mundo. Nada que pertença a Amagar pode deixar sua terra. A não ser que usufrua de um feitiço proibido ou muito poderoso. O que está além da sua capacidade.

- Mas eu não quero ser uma Esbael! – disse Sarah ficando de pé rapidamente.

- Você tem alguma marca? Algo que tenha surgido quando você chegou aqui? – indagou Kionnuhr calmamente.

Sarah se aproximou e mostrou seu pulso marcado. O dragão fechou os olhos enquanto respirava de forma vagarosa.

- Se você tem este desenho estampado em seu corpo é porque o livro a escolheu para ser a nova guardiã, então ninguém, nem mesmo você tem o direito de tomar esta decisão... – fez uma pausa – A melhor coisa que tem a fazer é se conformar com o fato, por mais difícil que possa ser.

A jovem sentou calmamente no chão e abraçou seus joelhos enquanto chorava de tristeza. Não podia acreditar que tudo aquilo estivesse acontecendo. Cada dia que ela passava naquele mundo poderia ser o último. Com aqueles monstros a caçando não haveria um só minuto que estivesse em paz. Ser obrigada a fazer algo que ela não queria era terrível. Viu-se em um beco sem saída. Não tinha como voltar para seu mundo e teria que ficar naquele lugar estranho, mas ali ela correria risco de vida.

- Sinto que deveria lhe mostrar algo – disse Kionnuhr docemente. – Venha comigo.

Sarah ergueu a cabeça e enxugou as lágrimas que escorriam pelas maçãs de seu rosto. Ficou de pé e passou pelo portão logo atrás do dragão. Dentro do abrigo havia um enorme buraco no teto, que iluminava completamente o ambiente. O animal caminhou até a lateral de seu abrigo e pegou um grande pedaço de couro com a boca, depois caminhou novamente em direção a Sarah, largou-o no chão e disse:

- Consegue amarrar isto nas minhas costas?

A jovem assentiu e Kionnuhr deitou vagarosamente. Com muito esforço, Sarah ergueu o couro pesado e o colocou nas costas do animal, um pouco próximo ao pescoço por causa das asas. Havia uma faixa com pequenos furos que lembrava um cinto. Procurou por outra faixa que tivesse uma fivela e prendeu na que tinha os buraquinhos. Um estribo pendia no objeto de couro e havia dois pitos na parte de cima, em um formato quadrado. Era uma sela.

- Muito bom. Agora, suba.

Ela arregalou os olhos, por uma instante ficara assustada com idéia de voar por aí montada em um dragão, mas logo se animou. Afinal, quem teria a chance de voar em um ser tão magnífico, ícone das histórias de fantasia que costumava ler. A garota sorriu e colocou o pé esquerdo no estribo, passando a perna direita para o outro lado. Quando finalmente se acomodou na sela, segurou firme nos pitos e respirou fundo, ansiosa. Sarah pôde ver os dentes afiados do dragão, surgirem no formato de um leve sorriso.

- Segure-se!

Kionnuhr abriu suas enormes asas de morcego e começou a movimentá-las, para cima e para baixo, produzindo um vento bastante forte. O dragão começou a correr e, aos poucos, ambos começaram a voar. Ao atravessarem o buraco no teto da caverna, Sarah notou que o lago era ainda mais belo dali de cima. O animal estendeu as patas dianteiras como se corresse no ar, depois fez várias manobras que fizeram o estômago da jovem dar muitas voltas e ela começou a se sentir enjoada.

O dragão subiu o máximo que Sarah agüentou e encolheu suas asas. Os dois começaram a cair a uma velocidade surpreendente. A jovem começou a se arrepiar enquanto sentia um súbito frio na barriga, usou todo o seu fôlego para gritar o mais alto que podia como se isso amenizasse o medo que sentia naquele momento de aventura. Estavam cada vez mais próximos do lago e ela sentiu como se fossem mergulhar. Prendeu a respiração e fechou os olhos até que sentiu uma parada brusca. Kionnuhr havia aberto suas asas no último instante e agora planavam sobre a linda paisagem.

Sarah se inclinou um pouco para o lado tentando tocar na água. Estava fria, mas a sensação de ter o líquido fazendo cócegas na palma de sua mão era muito boa. Com um grunhido, Kionnuhr bateu novamente as asas lançado parte da água para os lados. Estavam novamente nas alturas. A jovem notou ao longe pequenos pontos que se movimentavam devagar. À medida que se aproximavam, Sarah notou que era um grupo grande de pessoas que seguravam picaretas, quebrando diversas pedras. Perguntava-se o porquê de estarem fazendo aquilo, destruir as rochas não abriria caminho para lugar nenhum, a não ser que quisessem fazer uso pessoal delas.

Foi aí que viu: um guerreiro robusto vestia uma armadura prateada e, com um chicote em uma das mãos, batia nas pessoas violentamente, deixando marcas avermelhadas e profundas em suas costas. Sarah sentiu uma forte pontada no coração como se cada golpe estivesse sendo aplicado diretamente nela, nunca tinha visto tamanha crueldade antes. “Escravidão é desumano!” – pensou, com os olhos arregalados. Tentou ver mais adiante. Avistou uma criança pequena, que aparentava ter uns cinco anos de idade, carregar pedras até um suporte de madeira. Sentou-se por um instante pra que pudesse descansar, mas um estalo ecoou pela floresta e a criança foi lançada contra o chão.

Um dos guerreiros a chicoteava constantemente. Sarah apertou os olhos e virou o rosto para uma direção alternativa. Abriu-os. Lágrimas deslizaram por seu rosto. Não tinha forças para observar aquela crueldade por mais tempo, nunca pensou que veria um ato tão desprezível. Era só uma criança, não fizera nada para merecer tanta dor, pobrezinho, tão pequeno, mas condenado por ser um escravo. Não podia ficar parada, não podia ignorá-los, tinha de ajudar aquelas pessoas. Fazia força para acalmar o coração agitado e ouviu algo em sua mente dizer: agora, você entende nossa dor.

Kionnuhr curvou o corpo em direção a caverna. Um baque foi provocado ao pousarem no abrigo do dragão. Um breve silêncio tomou conta do lugar e ambos só escutavam o tilintar das gotas de água que tocavam o chão. Ao refletir, Sarah quebrou o silêncio:

- Diga-me tudo o que preciso saber. Vou fazer o que estiver ao meu alcance para ajudar.

- Esta é a atitude que eu esperava de você – disse o dragão com um sorriso que deixou à mostra seus grandes dentes, tão afiados quanto adagas – O que quer saber?

- O que são Esbaels? – disse seriamente.

- Muito bem – fez uma pausa escolhendo cuidadosamente as palavras – As Esbaels existem há muitos séculos, elas foram criadas logo após o livro de pórion, para que pudessem protegê-lo. Inicialmente uma Esbael era escolhida a dedo pelo conselho dos feiticeiros anciãos e esta, iniciava seu treinamento para tornar-se mais forte e capaz para proteger o livro, mas há dois séculos o livro escolheu, pela primeira vez, sua guardiã. A Esbael escolhida era a mais poderosa de todas, pois podia manipular certos feitiços de formas desconhecidas, por puro instinto, e era imortal, a única forma conhecida para matá-la era decapitando-a – pelo menos até onde sabemos.

“Imortais?!” – pensou Sarah – “Não sei se gosto dessa idéia”

- Depois que esta Esbael foi assassinada, o livro jamais escolheu uma guardiã novamente, portanto, as Esbaels voltaram a ser escolhidas pelo conselho.

- E por que o livro escolheu alguém para ser seu protetor?

- Acredita-se que ele só escolha alguém quando os ambiciosos que o anseiam sejam uma verdadeira ameaça para este mundo...

- Como o rei Oberon? – interrompeu.

- Exato – fez uma pausa – Agora que o objeto a escolheu, o rei Oberon deve ser uma ameaça muito maior do que esperávamos.

- A citação que encontrei no livro quando fui trazida para cá, dizia que o Esbael escolheria “O protetor” e o guiaria. Como saberei escolher o protetor?

- Quando chegar a hora certa você saberá.

- Quando estive na floresta Flóriur, o líder dos Endirvis disse que o livro era um mapa para os quatro artefatos de pórion. O que são eles e para que servem?

- Três dos artefatos são elementais. Um do fogo, um da água e um da terra o quarto é desconhecido. Os elementais serão reunidos em um templo antigo e o quarto artefato, junto aos outros, é a chave para abrir o portal do poder supremo. Se por acaso alguma coisa sair errada e o quarto artefato for confundido, um portal de trevas se abrirá e este, sugará aquele que tentou adquirir o poder supremo.

- O rei Oberon é imortal da mesma forma que eu?

- Não – disse adoçando seu tom de voz – Sua imortalidade veio dos Endirvis e estes eram vulneráveis a ataques da carne.

- Já fiz todas as minhas perguntas, tem algo mais que eu precise saber?

- Você precisa iniciar seu treinamento rogesh, e precisa de alguém para guiá-la pelas cidades, alguém que conheça Amagar como ninguém.

O dragão olhou para a entrada da caverna: Maya venha até nós. A animorfa apareceu, e fazendo uma reverência disse:

- Do que precisa?

- Peraí, como você sabia que ela entraria aqui? – indagou Sarah ao dragão.

- Eu me comunico com quem eu quiser através de minha mente – sorriu – Assim como fiz com você quando sobrevoávamos a região – desviou seu olhar de Sarah para Maya – Eu gostaria que você ficasse responsável por...

- Sarah – interrompeu –, me chamo Sarah.

-... Sarah – prosseguiu o dragão – Gostaria que você ficasse responsável por Sarah para guiá-la através das cidades para que ela inicie seu treinamento, faria isso?

- Darei minha vida para protegê-la – respondeu Maya.

- Muito bem, que as estrelas guiem vocês em sua jornada – fez uma pausa – Rogarei por sua segurança Sarah-rogesh. Se por acaso precisar de ajuda, clame por mim em seus pensamentos e irei a seu auxílio, não importa onde esteja.

- Obrigada, Kionnuhr – fez uma reverência e se retirou com Maya – Ah! – disse retornando – Antes de ser transportada para este mundo, sonhei com a antiga Esbael...

-... Elenwë? - interrompeu o dragão.

- Isso! – confirmou a jovem – Ela estava sendo ataca por criaturas chifrudas com lâminas nos pulsos como as que eu vi na floresta antes de chegar aqui – fez uma pausa – Eu... Eu a vi morrer em meu sonho.

O dragão não dizia nada, apenas a observava com seus olhos tão azulados quanto uma pedra safira.

- Quando cheguei aqui descobri que ela era real e que realmente tinha morrido, foi como uma visão. O que me deixou confusa, foi que há alguns dias atrás eu sonhei com ela de novo, mas desta vez estava em uma cela escura e suja com os pulsos amarrados em grilhões – sua voz começou a ficar mais séria – Esta poderia ser uma visão também?Ela poderia estar viva?

Capítulo 3 – Povo amaldiçoado


Capítulo 3 – Povo amaldiçoado

O homem a observava como se esperasse a primeira dúvida. Sarah franziu a testa e apertou os olhos, em busca da primeira pergunta que faria em meio a tantas que havia acumulado. Olhou no fundo dos olhos dele, suspirou e disse:

- Primeiro de tudo, quem são vocês?

- Somos Endirvis, povo da floresta para muitos e rebeldes para o rei de Koelsig, Oberon. Somos uma raça amaldiçoada pela ausência de nossa imortalidade.

- Vocês eram imortais?

- Contar-lhe-ei tudo o que estiver ao meu alcance desde o princípio – fez uma pausa – Há sete anos, um homem iniciou seu treinamento em Delaetar para tornar-se um bruxo, eu era jovem na época em que os bruxos e os Endirvis viviam lado a lado, mas me lembro como se fosse ontem. Ele era um aluno exemplar, um dos melhores, mas isto começou a consumi-lo e com o passar do tempo ele se tornou tão ambicioso que ansiava por mais poder. O homem lutou contra Pratórius líder dos bruxos na época, mas acabou derrotado e exilado de sua terra. Os bruxos fugiram logo depois que Oberon tomou o trono do rei de Koelsig e ficou ainda mais poderoso. Alguns dizem que ele amaldiçoou o rei, outros dizem que este foi assassinado pelo feiticeiro ambicioso. Ele deixou que seus guerreiros saqueassem vilarejos e matassem pessoas mais humildes para conquistar a obediência através do medo...

- Este homem era Oberon? – interrompeu.

- Sim – respondeu o rei – Oberon veio até nós em nossa antiga cidade e ameaçou matar as mulheres e crianças que lá viviam se não renunciássemos a nossa imortalidade e déssemos a ele. Concordamos, mas ele quebrou sua palavra e destruiu as construções e grande parte de nossos entes queridos, levando consigo a nossa imortalidade. Migramos para esta floresta e, usando nossas habilidades de manipular elementos da natureza, criamos Bórtis, o guardião de fogo da floresta, e estas casas na árvore também. Quando meu pai morreu, eu assumi a posição de rei dos Endirvis e desde então, tenho protegido meu povo. Se houver algum perigo, Bórtis nos avisará por telepatia e tomaremos as medidas necessárias.

- Entendi, Bórtis é aquela serpente gigante que encontrei na floresta?

- Sim.

- Por que ele não me atacou se ele é o guardião da floresta? – indagou Sarah curiosamente.

- Ele tem o poder de ler o pensamento das pessoas e sentir a bondade em seus corações. Se visse que você era uma ameaça a queimaria por combustão.

“Ah! Acho que foi por isso que naquela hora, na floresta, senti como se toda a minha infância estivesse exposta. Aquela criatura leu meus pensamentos.” – pensou Sarah.

- Tem mais alguma coisa que queira saber?

- Bem, o que é um Esbael?

- A palavra Esbael quer dizer guardiã, em uma língua muito antiga. Não posso lhe dizer muito sobre as Esbaels, só que elas são os seres mais poderosos deste mundo, pois retém os conhecimentos de várias raças como: elfos e bruxos.

- O que uma Esbael faz afinal?

- Ela protege o livro de pórion para que este não caia nas mãos erradas.

- Pode-me falar sobre os artefatos de pórion?

- Receio que eu não seja a pessoa mais adequada para esta questão, infelizmente isto que eu lhe falei é tudo o que sei, mas há alguém que pode responder a todas as suas perguntas.

- Quem?

- Kionnuhr, o guardião da profecia.

- Onde posso encontrá-lo?

- Ordenarei que alguns de meus homens a escoltem até a caverna Duisternes, lá você encontrará Kionnuhr e assim tirar suas dúvidas, mas por hora, deve descansar.

- Eu só quero voltar para casa, eu não pertenço a este lugar!

- Você não é de Amagar?

- Não! Eu sou do planeta terra!

- O que é um planeta?

Sarah colocou a mão sobre os olhos e deslizou-a até a boca.

- Deixe para lá, o senhor disse que Kionnuhr tem as respostas para minhas perguntas, certo? – ele balançou afirmativamente a cabeça – Então ele deve saber algum jeito de eu voltar para casa.

- Qual é o seu nome?

- Sarah.

- Seja paciente Sarah-rogesh, hoje você deve descansar. Ordenarei que lhe tragam roupas novas e que a levem para uma boa casa, amanhã alguns de meus homens a escoltarão até Duisternes e lá você acabará com essa aflição, mas lembre-se, proteja o livro de qualquer maneira – ele tocou em seu ombro e a conduziu de volta para a sala do trono – Você teve sorte de nós a encontrarmos antes do rei – disse ele enquanto sentava-se novamente sobre a cadeira no centro da sala principal – Arian! – berrou.

A mulher que a havia trazido até o rei apareceu e fez uma reverência. Aguardando por uma ordem.

- Ek rogesh – disse ele.

A mulher sorriu.

- Leve-a até uma casa para que possa dormir confortavelmente, dê-lhe roupas novas e seus pertences antigos que você e seus homens pegaram. Em seguida, reúna alguns deles para escoltarem esta moça até a caverna de Duisternes pela manhã, ela terá uma audiência com Kionnuhr.

- Como quiser meu senhor – fez uma reverência e se retirou.

Sarah fez uma reverência e seguiu a mulher. Novamente, ambas usaram a escada de corda e madeira, desta vez para descer da casa. Ao chegarem ao chão, Sarah e ela caminharam pela cidade até chegarem a uma das árvores cuja escada pendia. Arian subiu, seguida de Sarah.

- É aqui que você vai ficar, mas lembre-se de sempre puxar as escadas enquanto estiver aqui, assim não correrá riscos, você só pode abaixá-la se escutar batidas no tronco da árvore e ver que conhece essa pessoa – Arian observou Sarah com seus olhos vermelho-rubi e abriu um largo sorriso, mostrando seus dentes perfeitos e brancos – Rogesh! – e abraçou-a – Nunca pensei que viveria para conhecer uma!

- Meu nome não é rogesh, é Sarah! – disse ela enquanto afastava a mulher.

- Eu não disse que era. Rogesh quer dizer Esbael em Ídier e você é uma. Este é um cargo de grande responsabilidade!

- O que é Ídier?

- É uma língua antiga usada por nossos antepassados e por grande parte dos seres mágicos de Amagar.

- Amagar?

- É como é chamado tudo o quanto vemos. O conjunto de cidades, colinas, montanhas.

- Você quer dizer, um mundo?

- É – confirmou ela com um olhar distante, como se imaginasse o que seria um mundo.

- Agora eu entendi.

- Ali você pode tomar banho, é só puxar a corda e prendê-la que a água sai, nós enfeitiçamos a madeira para que pudéssemos tomar banho com mais facilidade, assim não precisaríamos correr para a cachoeira do riacho todas às vezes. Depois que você terminar, desamarre a corda para que a água pare de cair – encaminhou-se para a saída da casa – Espere por mim, vou buscar suas novas roupas.

- Não vou ter que usar essas coisas com a barriga de fora vou?

Arian riu e desceu as escadas.

Sarah caminhou pelo quarto. No cômodo em que ela estava havia uma mesa com duas cadeiras e uma porta que estava aberta, foi para lá que Arian apontou quando disse que ela poderia tomar banho. Sarah entrou no outro cômodo pela porta e viu uma cama de solteiro com um colchão e um travesseiro do lado direito, ela sentou na cama. Não era tão confortável quanto a sua, mas dava para o gasto.

Levantou-se e foi até a esquerda da cama, onde um pequeno cano feito de madeira um pouco mais alto do que ela, estava embutido na parede e preso a ele estava uma cordinha, Sarah deduziu que seria onde ela poderia tomar banho. Puxou a cordinha e a amarrou em uma estaca de madeira que ficava no chão. A água saiu em forma de bica através do redondo buraco do cano. De certa forma lembrava-lhe um chuveiro. Ela sorriu, desamarrou a cordinha e dirigiu-se para a cadeira do outro cômodo onde esperou por Arian.

Algum tempo depois a mulher apareceu trazendo algumas roupas apoiadas entre o queixo e o busto. Arian caminhou até Sarah e disse:

- Vista isto Sarah-rogesh! – e atirou as roupas sobre a mesa.

- Depois, encontre-me lá em baixo. Tem algumas coisas que quero lhe mostrar em nossa cidade, além de lhe devolver sua “guarda coisas” estranha – Arian sorriu e se retirou.

Sarah pegou as roupas sobre a mesa e analisou-as, desejando que não fossem pequenas como as de Arian. Entrou em seu quarto e se vestiu. Como ela temia, o shorte era curto o suficiente para mostrar suas coxas grossas e a blusa pequena demais, deixando sua barriga à mostra. Sentia-se mal, exposta, mesmo que não fosse gorda. Sentou-se na cama e retirou suas sandálias, calçando as botas que lhe haviam sido dadas.

Quando terminou, Sarah desceu as escadas e viu que Arian a aguardava. A mulher sorriu e entregou-lhe a mochila. Sarah abriu-a verificando se o livro estava lá dentro, em seguida, fechou e a colocou nas costas.

- Importa-se se eu ficar com esta coisa? – indagou Arian mostrando a barrinha de chocolate.

- Você sabe o que é isso? – perguntou Sarah para Arian que balançou a cabeça em sinal negativo – É chocolate – a mulher lançou-lhe um olhar de dúvida – É comida – explicou.

A mulher sorriu e mordeu a embalagem, fazendo uma careta.

- É ruim!

- Não é assim que se faz! Dê-me aqui.

Sarah pegou a barra de chocolate e rasgou a embalagem, entregando para Arian, a mulher lançou um olhar de dúvida, temendo que o conteúdo fosse tão ruim como o que o guardava. Olhou para o chocolate, fechou os olhos e deu uma mordida. Mastigando de forma rápida, engoliu e mordeu de novo.

- Hum – disse Arian enquanto revirava os olhos ao saboreá-lo – Isto é muito bom!Tem mais destes?

- Tinha na minha mochila, mas sumiram. Acho que seus companheiros pegaram tudo.

- Não tem problema, pelo menos pude provar. Agora, venha comigo – disse ela mordendo o chocolate outra vez.

As duas foram caminhando por entre as árvores e chegaram ao riacho onde haviam se encontrado, atravessaram-no e entraram no outro lado da floresta. Arian explicou que neste lado havia diversos tipos seres mágicos, cada um com seus costumes e todos a receberiam com muito carinho se dissesse que era a Esbael.

Quando Arian terminou de comer seu chocolate, as duas foram até uma montanha de pedras que tiveram que escalar. Ao chegarem ao topo, viram da cachoeira do riacho, a enorme extensão da floresta em que estavam e mais ao longe um vale com vegetação rasteira, era uma visão magnífica e Sarah sentiu-se feliz ao conhecer um lugar mágico como aquele. Coisa que em seu mundo jamais poderia ter visto. A jovem abaixou a cabeça com um olhar de tristeza.

Arian esperou um tempo pra que as duas pudessem descer novamente. Alguns minutos depois, quando as duas já estavam lá embaixo, Arian levou Sarah para ver os unicórnios que habitavam a floresta. Explicou para ela a pureza do sangue do animal, e que ao bebê-lo sua vida é prolongada, mas que são seres muito magníficos para que sejam assassinados apenas para satisfazer os caprichos de alguém.

Em seguida, conduziu-a para um canto da floresta onde ficaram sentadas durante uns trinta minutos, esperando por algo que Sarah não fazia idéia do que era. Quando uma brisa forte beijou seu rosto trazendo consigo um cansaço imensurável que tomou conta da jovem, ela ouviu um ronronar alto demais para ser de um simples gato doméstico. Quando um tigre enorme saltou da árvore de onde ela estava encostada. O animal se aproximou calmamente, deixando a mostra seus dentes, grandes e afiados enquanto sua cauda listrada ricocheteava.

Sarah procurou se acalmar e puxou discretamente o braço de Arian, para que as duas pudessem recuar. O animal se aproximava cada vez mais, mas a mulher parecia calma. Arian sorriu e pôs-se de pé, caminhando até o quadrúpede. Sarah estava com medo, mas se sua guia caminhava até o bicho era porque sabia o que estava fazendo. Arian acariciou a enorme cabeça do tigre que ronronou satisfeito.

- Tudo bem Maya, ela é uma amiga – disse Arian para o animal.

O tigre fugiu dos carinhos da mulher e caminhou até Sarah cheirando seu rosto. Ela não se conseguiria se mover, nem se quisesse. O tigre recuou e como se estivesse sorrindo e começou a mudar de forma. Aos poucos ele foi se transformando em uma bela mulher de cabelos ruivos, lindos olhos azuis celeste, pele branca como a neve e vestindo roupas pequenas como as de Arian, mas um detalhe a destacava, ela usava uma pele de tigre nas costas como se fosse uma capa. A mulher parecia ter a mesma idade de Arian e não muito mais velha do que Sarah.

- Então, como você está? – perguntou Maya a Arian.

- Estou bem, pensei que você não iria passar por aqui hoje.

- Eu acabei de chegar do vilarejo Andalaar, as coisas não estão boas – fez uma pausa – Acabei de saber que Elenwë foi assassinada...

- A Esbael? – interrompeu Arian.

Sarah arregalou os olhos, se a Esbael de quem elas estavam falando era uma mulher e esta tinha morrido, significava que a pessoa de quem falavam era aquela de seu sonho, aquela que protegia o livro. Se a mulher, Elenwë, realmente existia isso significava que aquelas criaturas horrendas também? Um calafrio percorreu sua espinha, agora Sarah sabia no que estava se metendo.

- Sim – respondeu Maya – Alguns homens disseram que a loucura cega o rei Oberon, eles querem combatê-lo, mas o medo toma conta de seus corações depois de tudo o que o rei já fez. Eles temem o destino que suas famílias terão se por acaso se opuserem a ele.

Sarah respirou fundo, ela mal podia esperar pelo dia seguinte pra que pudesse falar com Kionnuhr, e arrumasse um jeito de voltar para casa. Não sabia que futuro teria se continuasse naquele mundo e sendo a nova guardiã do livro. Procurou esquecer tais pensamentos e se concentrar no presente. Coisa que seus pais haviam lhe ensinado: “O mais belo momento da vida, o mais rico e o mais carregado de futuro, é o minuto presente.” – era o que costumavam dizer. Ah, seus pais, sentia tanto a falta deles, agora mais do que nunca.

- Você está bem? – perguntou Arian a Sarah.

- T-tudo bem – gaguejou Sarah.

- O que é isso nas suas costas? – indagou Maya curiosamente, enquanto se aproximava da mochila de Sarah.

- É tipo uma bolsa, você sabe, pra guardar as coisas.

- Eu sei o que é uma bolsa, tenho uma bem aqui! – disse ela apontando para um pequeno saco de couro preso em um cinto.

- O que é você? – perguntou a garota.

- O que sou eu?! – espantou-se a mulher dando uma gargalhada – Eu minha cara, sou uma animorfa.

- Aniquê?

- Animorfa – repetiu asperamente –, eu posso me transformar em qualquer animal que eu queira, mas prefiro o tigre e a raposa – explicou – E você o que é?

Sarah não acreditava que diria aquilo, mas era a única coisa que fazia as pessoas daquele mundo a tratarem com mais respeito. E este era o jeito que ela gostava de ser tratada, com respeito. Coisa que os alunos de seu colégio não faziam, apenas Karina.

- Sou uma Esbael – respondeu seriamente.

A animorfa parecia estar em choque, ela encarou Sarah por um bom tempo antes que pudesse dizer uma palavra novamente.

- E-Esbael? – gaguejou a mulher – Mas a Esbael era Elenwë e ela esta morta.

- Sou a mais nova Esbael – disse ela estendendo o pulso esquerdo.

- Entendo – fez uma pausa – Sinto-me honrada – disse inclinando levemente a cabeça e ensaiando um sorriso.

- Estamos indo para a caverna Duisternes amanhã para falarmos com Kionnuhr, gostaria de vir conosco? – indagou Arian.

- Mas é claro, quero ver no que isso vai dar! Podem partir sem mim, eu as encontrarei.

- Então até amanhã! – disse Sarah.

- Que as estrelas a iluminem esta noite – disse Maya fazendo uma leve reverência.

- Até logo, minha amiga – despediu-se Arian.

Maya recuou e transformou-se novamente em tigre, subindo rapidamente na árvore mais próxima com o auxilio de suas garras e desaparecendo de vista.

- O que ela quis dizer com isso?

- Ela a abençoou – respondeu Arian – Agora vamos voltar antes que anoiteça.

As duas viraram-se e seguiram para Flóriur, a cidade do povo Endirvis. Atravessaram o riacho e entraram na floresta. Arian conduziu Sarah até a casa onde a jovem estava hospedada, já que ela não conseguia se localizar em uma floresta como fazia na cidade.

- Descanse hoje, pois amanhã nossa jornada será longa e não sabemos que perigo nos aguarda – fez uma reverência – Durma bem ó rogesh – inclinou a cabeça e se retirou.

Sarah ainda não estava acostumada com tais formalidades e nem em ser tratada tão bem, as últimas vinte e quatro horas tinham sido exaustivas e ela ainda tinha esperanças de que na manhã seguinte, iria acordar e perceber que tudo não passara de um sonho. Afinal, era tecnicamente impossível alguém ser transportada para um mundo estranho como aquele por um simples objeto e uma mulher comum se transformar em um animal. Subiu as escadas de sua hospedaria, fechou a porta do quarto e deitou-se na cama.

No dia seguinte, Sarah acordou cedo devido ao costume que tinha de ir para a escola pela manhã. Levantou-se e calçou suas botas, dirigindo-se para a sala. Ao chegar lá, viu a mesa repleta de frutas de todos os tipos, inclusive alguns que ela nunca tinha visto, mais adiante, Arian debruçava-se pela janela do cômodo.

- Bom dia, Sarah-rogesh.

- Bom dia Arian – deu um sorriso – como conseguiu trazer tudo isso para cá?

- Venha ver!

Sarah aproximou-se da janela, onde Arian puxava uma corda e fazia uma pequena cesta subir. Quando terminou, amarrou-a em uma estaca que ficava presa à parede da sala próxima a janela, e debruçou-se sobre ela, retirando mais algumas frutas da cesta. Em seguida, Arian caminhou até a mesa e colocou a comida sobre ela.

- Acho que já é o suficiente para você não é?

- Está ótimo!Obrigada!

- Você não subiu a escada como eu lhe pedi, não foi? – indagou a mulher observando Sarah sentar-se a mesa.

- Eu esqueci – disse a garota com um sorriso descuidado.

- Não é brincadeira!Se alguém tivesse descoberto que você estava aqui na noite passada e decidisse lhe atacar e roubar o livro?

Sarah abaixou a cabeça pensando nas conseqüências que seu ato trariam para ela e para as pessoas da cidade.

- Sinto muito.

Arian sorriu.

- Deixe para lá, agora já passou. Só tome cuidado pra que não aconteça novamente, certo?

- Tudo bem.

- Agora coma, você deve estar faminta depois de um dia agitado como o de ontem, estarei esperando lá em baixo – disse ela enquanto se dirigia para as escadas.

Sarah olhou bem para a mesa cheia de frutas e pegou uma maçã, abocanhando-a rapidamente, em seguida pegou uma uva e a colocou na boca, ao engolir o pedaço da maçã. Quando terminou de tomar seu café da manhã, Sarah tomou banho no pequeno “chuveiro” feito de madeira, vestiu-se e colocando sua mochila nas costas, desceu as escadas da casa, onde encontrou Arian encostada no tronco da árvore.

- Tome! – disse a mulher atirando uma adaga guardada em uma bainha preta – Vai precisar disso para se defender caso o rei Oberon envie alguma surpresa para nós no caminho.

- M-mas eu nunca usei u-uma arma antes.

- Tenho certeza que quando chegar o momento certo, você saberá.

- Como o rei vai saber que estou com vocês ou para onde estou indo? – indagou Sarah com curiosidade enquanto começava a seguir Arian por entre as árvores.

- O rei tem muitos espiões por aí e se alguns deles o informaram de sua aparência física. Oberon consegue vê-la através de um feitiço em sua bola de cristal, a não ser que a pessoa observada esteja protegida por algo mais forte.

As duas pararam na beira do riacho onde cinco Endirvis as esperavam com duas canoas. Arian deu sinal para que carregassem as pequenas embarcações. Mais adiante, onde não havia mais pedras que pudessem atrapalhar o progresso das canoas dentro do rio, Arian e Sarah ajudaram os companheiros a colocá-las na água, depois entraram três em uma e quatro em outra.

Um dos Endirvis ensinou Sarah a remar, explicando-lhe que como ela estava na ponta da embarcação, deveria equilibrá-la remando duas vezes de um lado, depois duas vezes do outro. Sarah logo pegou o jeito e com a ajuda da correnteza do rio, eles se locomoveram rapidamente. Quando o sol começou a se pôr, atracaram as canoas na margem e lá acamparam.

Arian mandou um de seus companheiros arrumar comida e ele voltou com diversas frutas nos braços. Este ato começou a despertar certa curiosidade em Sarah, ela não os via comendo carne, apenas frutas o dia inteiro.

- Vocês não comem carne?

Arian e os companheiros riram com gosto.

- Por que comeríamos Sarah-rogesh, se somos os protetores da floresta? - fez uma pausa - Cada animal neste lugar, cada planta aqui presente tem vida e sentimento, seriamos incapazes de destruí-los para nos alimentarmos, por isso só comemos as frutas – explicou – Ainda assim com grande pesar, pois elas também estão vivas, mas não temos escolha, precisamos nos alimentar – acrescentou.

- Entendi – disse Sarah vendo certo sentido no que a mulher dizia, mas isso não a faria mudar de idéia em relação a comer carne. Afinal, era um alimento muito bom.

A noite caiu e diversas estrelas se espalharam pelo céu. Os Endirvis já haviam adormecido, mas Sarah permanecia acordada enquanto distraia-se em seus pensamentos. Ela estava deitada com as mãos sob a cabeça olhando as estrelas, perguntando-se como seus pais estariam preocupados com seu desaparecimento. Uma lágrima escorreu por seu rosto moreno e delicado.

Sentia-se deslocada em um mundo totalmente diferente do seu, com pessoas desconhecidas e costumes estranhos. Sentia falta de sua família, de sua amiga Karina e até dos cheeseburgers e batatas fritas. Iria enlouquecer se continuasse naquele lugar por mais alguns dias se alimentando apenas de frutas. Viajando em suas preocupações, Sarah adormeceu.

Despertou na manhã seguinte ao sentir os raios do sol envolvendo seu rosto. Esfregou os olhos e caminhou até a beira do rio, pegando uma porção de água e molhando o rosto para que pudesse sentir-se mais disposta. Acordou a todos que ainda dormiam e novamente colocaram as canoas na correnteza do rio, seguindo viajem. Ao entardecer, Arian ordenou que todos atracassem novamente na margem, para que pudessem acampar.

- Por que vamos parar agora? – indagou Sarah.

- Está vendo este chão que estamos pisando? – a garota assentiu – Olhe para ele mais adiante com relação ao rio, lá na frente este chão tornou-se um penhasco e as águas não tem mais margem. Conseqüentemente não teremos onde acampar se anoitecer – fez uma pausa – Mas se navegarmos bem cedo, chegaremos à caverna ao entardecer de amanhã.

- Ah, tá.

Ao cair da noite todos repetiram a refeição dos últimos dias e foram se deitar, mas desta vez, Arian ficou de vigília. Sarah não demorou muito para cair no sono e logo se viu mergulhada em um sonho muito parecido com o primeiro que teve quando ainda estava em seu mundo.

Desta vez, Elenwë, a mulher de cabelos longos e castanho-escuros, com seus olhos verdes e tristes, estava em uma cela escura e suja, onde Sarah pôde ver alguns ratos correndo enquanto a mulher chorava de dor com os pulsos amarrados em grilhões. Ela notou que ela não tinha uma tatuagem igual a sua em lugar algum. Elenwë abriu os olhos e ergueu a cabeça ao ouvir o rangido, emitido pela porta de sua cela, se abrindo. Tinha ferimentos superficiais em seu rosto. Sarah tentou ver o que era que estava acontecendo, mas a única coisa que viu foi o rosto de... Arian?

- Acorde rogesh! – sussurrou a mulher.

- O que foi? – indagou Sarah, atordoada.

- Ouvi barulhos vindos da floresta, temos que sair daqui!