terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Capítulo 4 – Kionnuhr, o guardião da profecia



Ao sentir a veemência das palavras da Endirvis, Sarah sentiu um súbito frio na boca do estômago e levantou de forma rápida. Ouviu o farfalhar das folhas ao longe e notou que alguns galhos despencavam das árvores. Perguntou-se que tipo de ser, que caminhasse sobre árvores, causasse tamanho estrago. Sob os gritos de Arian, todos começaram a colocar as canoas de volta no rio. Uma brisa cortante beijou-lhes o rosto no momento em que Arian fora lançada na água. A mulher lutou contra a correnteza até que conseguiu se segurar na margem. Ao sair do rio, completamente encharcada, tentou ignorar o frio que praticamente impedia sua locomoção, colocou as mãos em forma de concha nas bochechas e gritou:

- Você está bem?

- Estou – respondeu Sarah – O que foi aquilo?

- Pela velocidade do ataque, provavelmente Muirakans! – respondeu Arian – Protejam-na! – ordenou ela enquanto mergulhava novamente no rio e nadava até o lado em que Sarah e seus companheiros estavam. – Temos que sair daqui, agora!

Os Endirvis entraram nas pequenas embarcações, logo em seguida. Quando Sarah colocou um dos pés dentro da canoa um dos Muirakans saltou sobre ela e com um movimento rápido, Arian desembainhou sua adaga e a enfiou na cabeça da criatura que soltou um gemido estridente que machucaria os tímpanos de qualquer um. Todos cobriram seus ouvidos até a criatura cair morta espalhando seu sangue negro pelo chão. Arian ajudou Sarah a se levantar e ambas tentaram entrar nas canoas, mas viram-se cercadas por quatro das criaturas, que haviam surgido de repente.

- Saiam daqui! – berrou Arian para os companheiros.

- Mas e vocês? – perguntou um deles.

- Daremos um jeito!

Com uma expressão de culpa em seus rostos, eles apertaram os remos de modo que as pontas dos dedos ficaram brancas e começaram a remar até que desapareceram de vista. Sarah reuniu toda a coragem que tinha guardada dentro de si e desembainhou sua adaga, colocando em seguida sua mochila para frente, de modo que o livro ficasse seguro. As terríveis criaturas chifrudas exalavam um odor podre, que a deixava atordoada, ao se aproximarem lentamente.

- Fique atrás de mim! – ordenou Arian protegendo a Esbael.

Com a distância que os Muirakans estavam delas, não haveria mais como escapar. “É o fim!” – pensou Sarah. Uma das criaturas ergueu sua garra, preparando-se para o ataque, quando foi interrompida por um rugido estrondoso. Os monstros se viraram rapidamente, de modo a ficarem de costas para Arian e Sarah, balançando as cabeças à procura da origem do som. Um par de olhos reluzentes surgiu sobre a copa de uma das árvores e uma pantera negra saltou sobre uma das criaturas, sua boca repleta de dentes abocanhou a cabeça do inimigo e com um puxão brutal arrancou uma parte do couro, matando-o.

O animal ficou frente a frente com os Muirakans, enquanto apertava seus grandes olhos amarelos, observava cada passo atentamente, ao mesmo tempo em que protegia Arian e Sarah. Os monstros tentaram atacar, mas a pantera bloqueava cada golpe com uma forte patada enquanto mostrava seus dentes compridos e afiados. O animal caminhou lentamente para trás de modo que as duas recuassem em direção ao rio, até que caíram. Neste momento as três criaturas restantes tentaram agarrá-las, mas com uma velocidade surpreendente, a pantera matou um deles com diversos golpes consecutivos no peito e imobilizou os outros dois. Sarah e Arian só conseguiram ver o animal lutar contra os monstros enquanto eram levadas pela correnteza.

Apesar de estar tomada pelo cansaço, Arian nadou com o pouco de força que ainda lhe restava, segurando Sarah com uma das mãos para indicar o caminho. Com o auxílio da correnteza, não demorou muito para que encontrassem as canoas. Os Endirvis as ajudaram a embarcar e ambas respiraram aliviadas por terem escapado da morte. Sarah espremeu o cabelo e passou a mochila – que antes estava na parte da frente de seu corpo – para as costas. Ela pegou um remo e ajudou os companheiros a mover a embarcação.

- Aquela – fez uma pausa – É Maya não é?

- É – respondeu a Endirvis desviando sua atenção para o topo da corredeira, onde antes estavam. - Espero que ela esteja bem – disse em um tom de voz triste.

Domados pelo cansaço, que as poucas horas de sono haviam produzido, todos remavam com determinação para que pudessem chegar à caverna o mais depressa possível e sem dormir, para que não fossem novamente surpreendidos. Arian sentia uma onda de sensações ruins no peito. A angústia, de esperar Maya dar um sinal de vida, se misturava ao peso terrível que sentia em suas pálpebras, que se fechavam involuntariamente. As horas que se seguiam pareciam ser eternas.

Sarah notou que as margens do rio, aos poucos, tornavam-se grandes penhascos – como Arian havia lhe dito que aconteceria. Quando finalmente chegaram ao lago, os raios do sol cobriram suas águas com um mesclado de amarelo, laranja e vermelho. Apenas uma mancha negra se destacava no pé da montanha e Sarah viu, era lá, a caverna Duisternes. Finalmente haviam chegado. A jovem abriu um largo sorriso ao se lembrar que Kionnuhr a diria como voltar para casa, mal podia esperar. Não agüentava mais ficar naquele mundo onde corria risco de vida todo instante.

Depois de algum tempo, finalmente haviam atracado na entrada da caverna. Sarah deu um longo suspiro, aliviada. Olhou o percurso que haviam feito. A corredeira ficava no meio da grande fenda – que estava à esquerda da jovem. O lago era belíssimo quando iluminado pelos raios do sol e o silêncio do ambiente era quebrado, apenas pelo choque de gotas d’água com o chão que ecoavam pela caverna. Concluiu que só um louco moraria em um lugar úmido e escuro como aquele.

- Sugiro que descansemos aqui enquanto Maya não chega – disse Arian.

- Mas e se aquelas criaturas voltarem? – indagou Sarah.

- Não vão voltar – afirmou a Endirvis – Elas só aparecem durante a noite.

- Entendi, tudo bem então.

Aos poucos, todos começaram a se acomodar no chão, alguns deitados, outros, sentados. As roupas de Sarah ainda estavam um pouco úmidas e ela abraçou o peito enquanto esfregava os braços, na tentativa de reduzir o frio que sentia. A jovem observou que Arian estava sentada com os pés dentro da água, sem nem mesmo se mexer. De certa forma parecia aflita. Sarah engatinhou até a mulher e perguntou:

- O que foi?Está preocupada?

- Conheço Maya desde que éramos crianças, ela é como uma irmã para mim – desviou o olhar do lago para Sarah. – Se não sentisse nada agora, seria fria e insensível.

- Não se preocupe, ela vai ficar bem. Não a conheço tanto quanto você mas pelo modo com que ela matou aqueles monstros, com certeza está à salvo.

- Tomara – seu olhar se voltou novamente para o vazio. – Antes de Oberon governar Endirvis, bruxos e humanos viviam juntos, mas quando ele destruiu nosso antigo lar, cada um de nós passou a viver por conta própria. Maya passou um tempo sem me ver, mas quando cresceu mais um pouco, vivia andando por essas terras e sempre passava para ver como eu estava. Foi aí que vi que a distância não separa amigos, não aqueles que realmente se amam.

- Por que não descansa um pouco? Eu fico aqui para recebê-la.

- Não, tudo bem.

- Tem certeza?

- Sim, tenho.

- Então fico aqui com você.

Sarah enfiou os pés dentro da água mordendo os lábios ao sentir o contato do líquido frio com suas pernas que já haviam aquecido.

- Não precisa pode ir descansar.

- Eu quero – disse ela abrindo um sorriso.

A jovem apoiou as mãos no chão e deslizou o olhar pelo céu azul-celeste, observando as formas das diversas nuvens que o decorava.

- Olha só aquela nuvem! Parece um coelho – disse Sarah, sorrindo.

Arian apertou os olhos como se tentasse enxergar algo.

- Um pássaro!

- Para mim parece um coelho.

- Não – ficou de pé e com o dedo indicador apontou: – Um pássaro!

Um pequeno animal voava em direção à elas com uma das asas, enquanto tentava manter a outra ativa. Arian estendeu as mãos para que pudesse amortecer a queda. O pássaro não parava de piar e seu coraçãozinho batia rápido contra o peito. A Endirvis se ajoelhou e colocou cuidadosamente o frágil animal no chão. Devagar, a forma do pássaro começou a mudar e Maya surgiu.

A animorfa estava ofegante e segurava um dos braços, completamente ensangüentado. Gotas de suor escorriam por seu rosto. Sarah pôde ver que as bochechas de Maya se movimentavam de modo frenético, como se a dor fosse sufocante. A animorfa engoliu em seco e movimentou a mão ensangüentada, cujas gotas de sangue manchavam o chão, até um pequeno saco de couro que estava amarrado em sua cintura e o entregou à Arian.

A Endirvis retirou algumas ervas do saquinho, colocando-as no chão e com o punho de sua adaga, amassou-as. Depois, pegou um pouco da pasta verde formada e passou sobre o ferimento de Maya. Quando terminou, mergulhou as mãos nas águas do lago e olhou em volta. Havia uma planta que crescia próxima à entrada da caverna. Arian arrancou a maior folha que encontrou e a envolveu no braço da amiga.

Maya contou que os Muirakans estavam em diversos lugares próximos à floresta e procuravam Sarah por ordem do rei, por isso havia demorado a encontrá-las, tentava ao máximo atrasar a chegada das criaturas, mas elas estavam em maior número e as que restaram vieram ao encontro do grupo. A animorfa também descreveu em detalhes a luta com os Muirakans, contou que no momento em que ela saltara para segurar os dois últimos, um deles tentou enfiar a lâmina que tinha embutida no pulso bem no braço dela, mas ela conseguiu desviar fazendo apenas um corte não tão profundo e que neste momento, em sua agonia, ela os destruiu brutalmente. Acrescentou que havia demorado a chegar porque seu braço doía demais e ela teve de tomar coragem para usá-lo durante o vôo.

O silêncio tomou conta do lugar. Durante as horas que se seguiram as três procuraram descansar ao máximo, afinal, a noite havia sido longa. Maya adormeceu encostada à parede na entrada da caverna e seu braço ferido repousava sobre a perna. Sarah permaneceu acordada, estava ansiosa demais para falar com Kionnuhr e descobrir uma maneira voltar para casa. Agitava os pés, que permaneciam sob a água, constantemente.

Com o passar do tempo, Sarah notou que o ambiente começava a ficar mais frio e deduziu que demoraria algumas horas para que o pôr-do-sol chegasse. Decidiu que o melhor a se fazer era acordar o grupo antes que anoitecesse e aquelas criaturas monstruosas voltassem a atacá-los. Sarah pôs-se de pé e, lentamente, começou a cutucar cada uma das pessoas. Arian bocejou enquanto esticava os braços, depois caminhou até a margem do lago, enfiou as mãos na água e jogou sobre o rosto.

Balançou as mãos, para que secassem com mais facilidade, e gesticulou para que todos a seguissem. Sarah observou a entrada. De certo modo aquela caverna escura a deixava um pouco assustada. A jovem respirou fundo e entrou a passos apressados, seguindo o grupo. Um cheiro estranho que lembrava mofo circulava pelo ambiente úmido e uma brisa quente beijava-lhe o rosto. No fundo da caverna havia algumas tochas presas à parede que iluminavam um portão enorme, que aparentava ter uns dez ou doze metros de altura.

Sarah se perguntou o porquê de uma entrada tão grande dentro de uma caverna. Ela notou que Arian caminhava até o portão e quando chegou há certa distância se ajoelhou. Ao ver que todo o grupo a acompanhava, a jovem fez o mesmo.

- Oh Kionnuhr o sábio, uma nova Esbael surgiu e ela necessita de tua sabedoria – Arian fez uma pausa – Por favor, precisamos de sua ajuda.

Um rangido ecoou pelo lugar e o enorme portão começou a se abrir de forma vagarosa. Sarah sentiu um tremor no chão e alguma coisa começou a sair do portal. “O que mais pode ser pior do que tudo o que já vi por aqui?” – pensou Sarah engolindo seco. Uma coisa redonda com três garras pousou no solo. A imagem era nítida agora, um enorme dragão dourado surgiu e caminhou calma e graciosamente pela caverna. O magnífico animal olhou para Sarah de soslaio. A jovem pôde ver o peito do quadrúpede, subir e descer, como se ele houvesse respirado fundo.

“Que diabos é isso?!Algum tipo de cão de guarda?” – pensou Sarah. O animal deitou em frente à Arian causando um tremor ainda maior do que os produzidos por suas passadas e a observou com um olhar penetrante. O rosto do dragão era bastante largo em seu maxilar o que deixava suas feições bem rígidas e masculinas. Tinha alguns espinhos ao redor do queixo e dois grandes chifres sobre a cabeça com pontas recurvadas. A luminosidade trazida pelas tochas fazia com que as escamas do seu corpo brilhassem tanto quanto ouro.

- Em que posso ajudá-los, pequeninos? – disse o dragão docemente.

- Ele fala! – berrou Sarah pondo-se de pé.

O dragão olhou para ela e riu de modo abafado.

- Mas é claro que falo querida – disse Kionnuhr carinhosamente. – É você a nova Esbael?

- É ela sim, Kionnuhr – disse Maya.

- Aproxime-se criança.

Sarah ficou paralisada. Ela estava bem distante do animal e ele já era enorme, imagina só se chegasse mais perto! A idéia não a agradava nem um pouco. A jovem recuou, mas Maya, que estava logo atrás, colocou a mão em suas costas e deu um leve empurrão. Sarah caminhou devagar em direção ao dracônio e este a observou por alguns segundos.

- Poderiam nos deixar a sós? Creio que esta garota tem muitas dúvidas em seu coração para serem preenchidas.

O grupo fez uma reverência e se retirou.

- Sente-se minha jovem – Sarah obedeceu – Então, o que quer saber?

- Bom, eu não sou deste mundo, sou de ou...

-... Eu sei disso – interrompeu o dragão.

- Sabe?! – espantou-se Sarah.

- Sou o guardião da profecia minha jovem e você faz parte dela... – fez uma pausa. – Um pouco antes de Elenwë, a guardiã que veio antes de você, morrer. Uma profecia surgiu nos pergaminhos sagrados e ela dizia que uma nova guardiã viria de outro mundo e nomearia um novo protetor, para salvar todos que habitam este mundo. – explicou o dragão.

- Uau – disse Sarah com um olhar distante. –, a única coisa que eu quero saber é como faço para voltar para casa.

Kionnuhr correu seus olhos azuis pela caverna até pousá-los novamente sobre Sarah.

- Sinto muito – fez uma pausa – Não poderá voltar.

Sarah sentiu como se houvesse sido empurrada em um poço sem fundo, não era possível que uma coisa dessas estivesse acontecendo com ela. De repente sua saliva começou a faltar e seu coração palpitava de forma rápida contra o peito. Logo agora que havia finalmente se acertado com Regina e que, tinha certeza, seriam amigas de novo uma tragédia dessas aconteceu. Não, não era possível, devia ter alguma maneira de ela voltar para casa, mal podia acreditar que estivesse condenada a permanecer naquele mundo pelo resto de sua vida, enquanto a seus pais deveriam estar angustiados a sua procura. Ela respirou fundo, procurando conter suas emoções para que não chorasse naquele exato momento.

- Como assim não posso voltar?

- Você agora é uma Esbael, e sendo uma você faz parte deste mundo. Nada que pertença a Amagar pode deixar sua terra. A não ser que usufrua de um feitiço proibido ou muito poderoso. O que está além da sua capacidade.

- Mas eu não quero ser uma Esbael! – disse Sarah ficando de pé rapidamente.

- Você tem alguma marca? Algo que tenha surgido quando você chegou aqui? – indagou Kionnuhr calmamente.

Sarah se aproximou e mostrou seu pulso marcado. O dragão fechou os olhos enquanto respirava de forma vagarosa.

- Se você tem este desenho estampado em seu corpo é porque o livro a escolheu para ser a nova guardiã, então ninguém, nem mesmo você tem o direito de tomar esta decisão... – fez uma pausa – A melhor coisa que tem a fazer é se conformar com o fato, por mais difícil que possa ser.

A jovem sentou calmamente no chão e abraçou seus joelhos enquanto chorava de tristeza. Não podia acreditar que tudo aquilo estivesse acontecendo. Cada dia que ela passava naquele mundo poderia ser o último. Com aqueles monstros a caçando não haveria um só minuto que estivesse em paz. Ser obrigada a fazer algo que ela não queria era terrível. Viu-se em um beco sem saída. Não tinha como voltar para seu mundo e teria que ficar naquele lugar estranho, mas ali ela correria risco de vida.

- Sinto que deveria lhe mostrar algo – disse Kionnuhr docemente. – Venha comigo.

Sarah ergueu a cabeça e enxugou as lágrimas que escorriam pelas maçãs de seu rosto. Ficou de pé e passou pelo portão logo atrás do dragão. Dentro do abrigo havia um enorme buraco no teto, que iluminava completamente o ambiente. O animal caminhou até a lateral de seu abrigo e pegou um grande pedaço de couro com a boca, depois caminhou novamente em direção a Sarah, largou-o no chão e disse:

- Consegue amarrar isto nas minhas costas?

A jovem assentiu e Kionnuhr deitou vagarosamente. Com muito esforço, Sarah ergueu o couro pesado e o colocou nas costas do animal, um pouco próximo ao pescoço por causa das asas. Havia uma faixa com pequenos furos que lembrava um cinto. Procurou por outra faixa que tivesse uma fivela e prendeu na que tinha os buraquinhos. Um estribo pendia no objeto de couro e havia dois pitos na parte de cima, em um formato quadrado. Era uma sela.

- Muito bom. Agora, suba.

Ela arregalou os olhos, por uma instante ficara assustada com idéia de voar por aí montada em um dragão, mas logo se animou. Afinal, quem teria a chance de voar em um ser tão magnífico, ícone das histórias de fantasia que costumava ler. A garota sorriu e colocou o pé esquerdo no estribo, passando a perna direita para o outro lado. Quando finalmente se acomodou na sela, segurou firme nos pitos e respirou fundo, ansiosa. Sarah pôde ver os dentes afiados do dragão, surgirem no formato de um leve sorriso.

- Segure-se!

Kionnuhr abriu suas enormes asas de morcego e começou a movimentá-las, para cima e para baixo, produzindo um vento bastante forte. O dragão começou a correr e, aos poucos, ambos começaram a voar. Ao atravessarem o buraco no teto da caverna, Sarah notou que o lago era ainda mais belo dali de cima. O animal estendeu as patas dianteiras como se corresse no ar, depois fez várias manobras que fizeram o estômago da jovem dar muitas voltas e ela começou a se sentir enjoada.

O dragão subiu o máximo que Sarah agüentou e encolheu suas asas. Os dois começaram a cair a uma velocidade surpreendente. A jovem começou a se arrepiar enquanto sentia um súbito frio na barriga, usou todo o seu fôlego para gritar o mais alto que podia como se isso amenizasse o medo que sentia naquele momento de aventura. Estavam cada vez mais próximos do lago e ela sentiu como se fossem mergulhar. Prendeu a respiração e fechou os olhos até que sentiu uma parada brusca. Kionnuhr havia aberto suas asas no último instante e agora planavam sobre a linda paisagem.

Sarah se inclinou um pouco para o lado tentando tocar na água. Estava fria, mas a sensação de ter o líquido fazendo cócegas na palma de sua mão era muito boa. Com um grunhido, Kionnuhr bateu novamente as asas lançado parte da água para os lados. Estavam novamente nas alturas. A jovem notou ao longe pequenos pontos que se movimentavam devagar. À medida que se aproximavam, Sarah notou que era um grupo grande de pessoas que seguravam picaretas, quebrando diversas pedras. Perguntava-se o porquê de estarem fazendo aquilo, destruir as rochas não abriria caminho para lugar nenhum, a não ser que quisessem fazer uso pessoal delas.

Foi aí que viu: um guerreiro robusto vestia uma armadura prateada e, com um chicote em uma das mãos, batia nas pessoas violentamente, deixando marcas avermelhadas e profundas em suas costas. Sarah sentiu uma forte pontada no coração como se cada golpe estivesse sendo aplicado diretamente nela, nunca tinha visto tamanha crueldade antes. “Escravidão é desumano!” – pensou, com os olhos arregalados. Tentou ver mais adiante. Avistou uma criança pequena, que aparentava ter uns cinco anos de idade, carregar pedras até um suporte de madeira. Sentou-se por um instante pra que pudesse descansar, mas um estalo ecoou pela floresta e a criança foi lançada contra o chão.

Um dos guerreiros a chicoteava constantemente. Sarah apertou os olhos e virou o rosto para uma direção alternativa. Abriu-os. Lágrimas deslizaram por seu rosto. Não tinha forças para observar aquela crueldade por mais tempo, nunca pensou que veria um ato tão desprezível. Era só uma criança, não fizera nada para merecer tanta dor, pobrezinho, tão pequeno, mas condenado por ser um escravo. Não podia ficar parada, não podia ignorá-los, tinha de ajudar aquelas pessoas. Fazia força para acalmar o coração agitado e ouviu algo em sua mente dizer: agora, você entende nossa dor.

Kionnuhr curvou o corpo em direção a caverna. Um baque foi provocado ao pousarem no abrigo do dragão. Um breve silêncio tomou conta do lugar e ambos só escutavam o tilintar das gotas de água que tocavam o chão. Ao refletir, Sarah quebrou o silêncio:

- Diga-me tudo o que preciso saber. Vou fazer o que estiver ao meu alcance para ajudar.

- Esta é a atitude que eu esperava de você – disse o dragão com um sorriso que deixou à mostra seus grandes dentes, tão afiados quanto adagas – O que quer saber?

- O que são Esbaels? – disse seriamente.

- Muito bem – fez uma pausa escolhendo cuidadosamente as palavras – As Esbaels existem há muitos séculos, elas foram criadas logo após o livro de pórion, para que pudessem protegê-lo. Inicialmente uma Esbael era escolhida a dedo pelo conselho dos feiticeiros anciãos e esta, iniciava seu treinamento para tornar-se mais forte e capaz para proteger o livro, mas há dois séculos o livro escolheu, pela primeira vez, sua guardiã. A Esbael escolhida era a mais poderosa de todas, pois podia manipular certos feitiços de formas desconhecidas, por puro instinto, e era imortal, a única forma conhecida para matá-la era decapitando-a – pelo menos até onde sabemos.

“Imortais?!” – pensou Sarah – “Não sei se gosto dessa idéia”

- Depois que esta Esbael foi assassinada, o livro jamais escolheu uma guardiã novamente, portanto, as Esbaels voltaram a ser escolhidas pelo conselho.

- E por que o livro escolheu alguém para ser seu protetor?

- Acredita-se que ele só escolha alguém quando os ambiciosos que o anseiam sejam uma verdadeira ameaça para este mundo...

- Como o rei Oberon? – interrompeu.

- Exato – fez uma pausa – Agora que o objeto a escolheu, o rei Oberon deve ser uma ameaça muito maior do que esperávamos.

- A citação que encontrei no livro quando fui trazida para cá, dizia que o Esbael escolheria “O protetor” e o guiaria. Como saberei escolher o protetor?

- Quando chegar a hora certa você saberá.

- Quando estive na floresta Flóriur, o líder dos Endirvis disse que o livro era um mapa para os quatro artefatos de pórion. O que são eles e para que servem?

- Três dos artefatos são elementais. Um do fogo, um da água e um da terra o quarto é desconhecido. Os elementais serão reunidos em um templo antigo e o quarto artefato, junto aos outros, é a chave para abrir o portal do poder supremo. Se por acaso alguma coisa sair errada e o quarto artefato for confundido, um portal de trevas se abrirá e este, sugará aquele que tentou adquirir o poder supremo.

- O rei Oberon é imortal da mesma forma que eu?

- Não – disse adoçando seu tom de voz – Sua imortalidade veio dos Endirvis e estes eram vulneráveis a ataques da carne.

- Já fiz todas as minhas perguntas, tem algo mais que eu precise saber?

- Você precisa iniciar seu treinamento rogesh, e precisa de alguém para guiá-la pelas cidades, alguém que conheça Amagar como ninguém.

O dragão olhou para a entrada da caverna: Maya venha até nós. A animorfa apareceu, e fazendo uma reverência disse:

- Do que precisa?

- Peraí, como você sabia que ela entraria aqui? – indagou Sarah ao dragão.

- Eu me comunico com quem eu quiser através de minha mente – sorriu – Assim como fiz com você quando sobrevoávamos a região – desviou seu olhar de Sarah para Maya – Eu gostaria que você ficasse responsável por...

- Sarah – interrompeu –, me chamo Sarah.

-... Sarah – prosseguiu o dragão – Gostaria que você ficasse responsável por Sarah para guiá-la através das cidades para que ela inicie seu treinamento, faria isso?

- Darei minha vida para protegê-la – respondeu Maya.

- Muito bem, que as estrelas guiem vocês em sua jornada – fez uma pausa – Rogarei por sua segurança Sarah-rogesh. Se por acaso precisar de ajuda, clame por mim em seus pensamentos e irei a seu auxílio, não importa onde esteja.

- Obrigada, Kionnuhr – fez uma reverência e se retirou com Maya – Ah! – disse retornando – Antes de ser transportada para este mundo, sonhei com a antiga Esbael...

-... Elenwë? - interrompeu o dragão.

- Isso! – confirmou a jovem – Ela estava sendo ataca por criaturas chifrudas com lâminas nos pulsos como as que eu vi na floresta antes de chegar aqui – fez uma pausa – Eu... Eu a vi morrer em meu sonho.

O dragão não dizia nada, apenas a observava com seus olhos tão azulados quanto uma pedra safira.

- Quando cheguei aqui descobri que ela era real e que realmente tinha morrido, foi como uma visão. O que me deixou confusa, foi que há alguns dias atrás eu sonhei com ela de novo, mas desta vez estava em uma cela escura e suja com os pulsos amarrados em grilhões – sua voz começou a ficar mais séria – Esta poderia ser uma visão também?Ela poderia estar viva?

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