sábado, 19 de janeiro de 2008

Capítulo 7

Apesar de não conhecer a animorfa muito bem, Sarah sabia que na maioria das vezes, ela nunca demonstrava expressão alguma. Podia até sorrir com freqüência e ser bastante atenciosa, mas quando se machucava ou enfrentava uma crise, Maya jamais perdia a calma. Era exatamente assim que estava agora, apesar do tom de voz áspero, a animorfa nem contraía o rosto. Ela caminhou pela barraca de treinamento enquanto Sarah e Urius a acompanhavam com o olhar. Maya caminhou até a Esbael e, quando colocou a mão em seu ombro exerceu certa pressão, forçando-a a sentar. Depois que todos se acomodaram, disse em tom sombrio:

- O vilarejo de Ar’mead foi atacado.

- Atacado?! – assustou-se Urius ficando de pé.

- Desculpem, mas sabem, sou um pouco desinformada sobre o que acontece por estas bandas então poderiam me explicar o que é este vilarejo?

- É o vilarejo mais importante para os rebeldes, é lá que vivem os mercadores – explicou o Curior ainda chocado enquanto caminhava em volta delas lentamente.

- Como tudo aquilo que esteja ligado aos Endirvis ou aos bruxos é destruído, os mercadores que viviam no vilarejo ajudavam com o abastecimento de armas e comida em segredo, mas de alguma forma Oberon descobriu – deixou que seu olhar se distanciasse. – Sem as armas não temos como lutar.

- Vocês não têm nenhum ferreiro que possa fabricar as armas? – indagou Sarah.

- Não temos, os Endirvis não são lá mestres na fabricação de armas. Mesmo que tivéssemos um precisaríamos de muito mais. Apenas um ferreiro não daria conta da quantidade de armas que um exército precisa – ela fez uma pausa enquanto cruzava as mãos.

- Pelos Deuses!Como aquele miserável descobriu que o vilarejo nos ajudava? – perguntou Urius, aflito.

- Quando saí de lá estavam torturando um mercador, não havia nada que eu pudesse fazer, estava sozinha. Com certeza tiveram a confirmação depois disso.

- Mesmo se não houvesse confirmação, como ele suspeitou? – indagou Sarah.

- Eu sinceramente não sei. Talvez alguém os tivesse delatado. Afinal, não há nada que uma boa ameaça não faça – voltou os olhos claros para a jovem. – As pessoas têm muito medo. Nossa situação piora a cada dia, as pessoas precisam de uma esperança, de um milagre.

- Enquanto aos Curiors? Eles não são mestres da espada? Poderiam fabricar as armas que os rebeldes precisam. Ainda mais aqui na montanha onde ninguém poderia atrapalhar é muito mais fácil para eles lidar com esta tarefa.

- Sim mas poderia levar semanas – disse Urius.

- Se todos se juntarem, podem ultrapassar seus próprios limites – disse a garota. – Que levem semanas!Bem ou mal não temos outra escolha, é muito pior ficarmos aqui parados não é?

- Sarah tem razão – concordou Maya. – O que me diz Urius?

- Bem – ele observou os olhares esperançosos que o fitavam. – Acho que meu pai fará o possível para ajudar. Trabalharemos dia e noite!

- Então está decidido! Os Curiors vão fabricar as armas para os Endirvis.

- Qual a situação do vilarejo? – indagou Sarah – Algum sobrevivente?

- Não consegui ver direito, já que sobrevoei rapidamente o local. Ar’mead estava infestado de guerreiros da guarda real, não podia descer lá para verificar sozinha – a animorfa se distanciou por um momento. – Preciso ir até lá o mais rápido possível, mas não posso ir sozi...

- Sarah não terminou seu treinamento ainda! – interrompeu Urius.

- Mas depois desta luta pensei...

- Você treinou com a espada de madeira e está indo muito bem, mas preciso ver como se sai com uma de verdade – interrompeu novamente.

- Quanto tempo acha que vai levar? – indagou a animorfa.

- Dois dias mais ou menos.

- Acho que posso agüentar – resmungou Maya. – Termine seu treinamento Sarah-rogesh – disse ela levantando-se e caminhando até a saída da tenda. –, depois partiremos.

- Nandige! – a animorfa voltou seus olhos para o Curior. – Não se preocupe, vai dar tudo certo, tenho certeza que meu pai não irá pensar duas vezes para ajudar vocês. Desde a fabricação de armas até uma luta se for preciso.

A mulher respirou fundo e disse:

- Eu sei que vai – ensaiou um sorriso.

- Vamos rogesh, acho melhor começarmos a lutar com a espada, ou você não estará preparada em dois dias.

Urius conduziu Sarah até uma tenda grande que ficava perto da barraca de duelos onde entraram. No centro da barraca havia um grande e grosso, pedaço de tronco de árvore e sobre ele uma enorme bigorna com pequeno martelo de ferro. Um homem no fundo do estabelecimento segurava uma grande quantidade de espadas enquanto procurava arrumá-las lado a lado sobre um suporte que estava no chão. Ao se virar, ele se espantou ao vê-los.

- Urius, tem algo em que eu possa ajudar? – indagou o homem.

- Precisamos de suas espadas Ergin, para treinarmos.

- Ora essa, e por que não pega uma de madeira?

- Essa foi a primeira parte do treinamento, a segunda é com uma espada.

- Como quiser – ele voltou sua atenção para Sarah. – E você quem é? – perguntou docemente.

- Esta é a nova Esbael – respondeu Urius.

Sarah inclinou a cabeça em cumprimento.

- Ora mas é uma honra! – ele fez uma reverência enquanto abria um largo sorriso. – Vou lhe dar uma especial que acabei de fazer.

Ergin caminhou para as espadas que havia acabado de guardar e pegou uma delas. O objeto era bonito e delicado, a lâmina devia ter em torno de uns setenta centímetros ou mais, o punho era azul marinho e o pomo cor de ouro assim como a guarda da espada que tinha três desenhos redondos de metal, um à esquerda, um no meio e um à direita. Definitivamente era linda, trabalho de um verdadeiro mestre. Antes de entregá-la para Sarah ele perguntou:

- Diga-me rogesh, como você é como pessoa?

- Bem, sou um pouco pessimista às vezes, mas determinada quando quero alguma coisa, penso sempre nos outros antes de mim e acho que nada é impossível, se você se esforça para conseguir. Bem, é tudo que posso dizer de mim mesma.

- És uma líder nata, mesmo que ainda não saiba disso – ele desviou seu olhar para Urius. – Pode pegar qualquer uma que quiser, e quanto a você rogesh, espere um instante.

Sarah notou um sorriso em Urius ao ver Ergin caminhar até o canto da tenda. O homem enfiou a mão por detrás de um tonel cheio de água e retirou um pequeno balde feito de madeira, depois de misturar várias coisas no recipiente, ele pegou uma folha enorme que guardava e enfiou lá dentro. A folha saiu completamente pintada de laranja. O Curior deslizou-a sobre a lâmina da espada em ambos os lados, mas não a pintou completamente. Levantou-se do chão e caminhou até Sarah:

- Ela é toda sua, não só para o treinamento como queriam, mas também para as batalhas que tenho certeza, estão por vir – e sorriu.

- Eu... Eu nem sei como agradecer – disse ela.

- Agradeça fazendo um bom uso dela. Espadas não são simples objetos, são uma parte de você.

- Muito obrigada – disse ela enquanto observava a lâmina alaranjada da espada. – Posso lhe fazer uma pergunta? – ele assentiu e entregou-lhe a bainha preta da arma. – Por que pintou a lâmina? – indagou ela embainhando-a.

- É a minha marca, é para que todos saibam que esta espada foi fabricada pelos Curiors. Dependendo de cada pessoa, escolhemos a cor. A cor laranja lhe dará otimismo, generosidade, equilíbrio e segurança em cada uma de suas lutas.

- Novamente, eu agradeço a generosidade.

- Não há de que.

- Agora vamos, temos muito que treinar ainda – interrompeu Urius.

- Vamos – Sarah fez uma reverência e se retirou.

Urius virou-se para o homem e disse:

- Estamos enfrentando uma crise com relação ao vilarejo Ar’mead, procure Maya para que ela lhe explique melhor a situação, talvez precisemos de todos aqueles que puderem ajudar para fabricar armas para os rebeldes – e se retirou.

Voltando a tenda de duelos, Urius advertiu Sarah com relação a este treinamento. Disse que não seriam mais lutas bruscas como as que tiveram quando usaram espadas de madeira, teriam de tomar o maior cuidado possível para não acabassem matando um ao outro. Explicou também que à medida que ela fosse pegando a prática e se acostumando com o peso da espada, ela já teria a capacidade para pará-la próxima ao corpo do adversário e aí sim, poderiam aumentar a força e velocidade do treinamento.

Urius ficou a postos e Sarah se posicionou a sua frente. Os dois se encararam seriamente durante um tempo, até que o Curior deu o primeiro golpe, Sarah bloqueou mas como não tinha o costume de segurar uma espada de verdade, o peso a atrapalhou fazendo com que a arma caísse no chão. Urius recuou e deixou que ela apanhasse sua espada. Novamente ambos se prepararam. Desta vez Sarah segurou firme o punho da arma.

O Curior atacou e ela bloqueou, cruzando várias vezes suas espadas. Quando Urius golpeou o ombro da Esbael, ela inclinou o corpo para trás e a espada passou raspando em seu peito, com um movimento rápido Sarah o atacou com a ponta da espada, o rapaz saltou para o lado, desviando. Os dois estavam praticamente do mesmo nível e a garota estava começando a gostar do resultado de seu esforço. No final da tarde quando encerraram o treinamento, Sarah recolheu-se para sua tenda e guardou a espada embainhada ao lado das almofadas.

A garota mal conseguia sentir o braço direito, toda vez que o erguia ele abaixava sozinho por causa do peso que tinha segurado praticamente o dia inteiro. Sarah ficou de pé e dirigiu-se para a tenda de Maya que ficava bem ao seu lado, ao entrar, a jovem viu a animorfa retirando uma enorme folha que envolvia um de seus braços. A mulher a olhou.

- Este corte foi o que aqueles monstros fizeram em mim há onze dias atrás quando as ajudei na floresta – disse ela pegando um pano, molhando na água que estava em um balde e passando sobre a pasta verde que estava sobre o ferimento. – Agora que foi cicatrizar e olhe que não foi muito profundo. Os Muirakans têm medo de nós, animagos, mas ainda assim conseguiram me ferir deste jeito – ela pegou um pano enxuto e passou sobre o braço úmido para que secasse.

No braço de Maya uma cicatriz em alto relevo que ia do ombro até próximo ao cotovelo, havia se formado. Sarah se aproximou da animorfa e sentou-se ao seu lado.

- Se ele tivesse enfiado mais teria arrancado seu braço.

- Agradeço aos Deuses que isso não tenha acontecido, o que seria de mim sem um braço?Dói-me só de pensar, mas agora já está tudo bem – Maya olhou para o braço direito da Esbael que ela erguia perto da barriga. – O que houve com seu braço?

Sarah observou-o e riu.

- Ah!Isso?Eu não estava agüentando o peso da espada – a animorfa sorriu para ela.

- Logo, logo você vai se acostumar pode ter certeza. Só alguns dias praticando e sua espada ficará leve como uma pluma é só ter paciência.

- Ah, mas eu sei ser paciente, até demais – sorriu. – Tudo o que eu passava no meu mundo me forçava a ter paciência.

- Então, o que faz aqui afinal rogesh?

- Eu só vim visitá-la, senti sua falta enquanto esteve fora. Ficar sozinha numa cidade como esta é terrível.

Maya gargalhou.

- Teralar é entediante se você não está fazendo algo de útil! E olhe que você fez muita coisa em seu treinamento, tenho certeza. Por eu criticar esta cidade quando sou obrigada a ficar aqui e por ficar no pé de alguns como o velho Rhotur, que a maioria deles não gosta de mim.

- Você chega a ser sarcástica na maioria das vezes.

- Já viu os caninos dele?!Alguém com um daqueles só pode ser um vampiro.

Ambas riram.

- Como se diz vampirinho da neve e Ídier?

- Dyrstigot ko dana – respondeu a animorfa.

- Driungot ko daná?– repetiu Sarah.

- Não. Dyrstigot ko dana – corrigiu.

- Dyrstigot ko dana – Maya assentiu. – Eu gosto desta língua, ela é diferente.

- Posso te ensinar as palavras básicas se você quiser, mas não posso ensinar tudo pois você tem coisas mais importantes para aprender no momento, sem mencionar que Ídier é uma língua muito grande e ninguém sabe ela por completo. Além disso, você aprenderá a grande maioria das palavras com os bruxos.

- Que palavras você pode me ensinar?

- Bem – disse Maya franzindo a testa, à procura de palavras fáceis. – Tenda é nagan em Ídier.

- E isso? – perguntou Sarah apontando para sua roupa.

- Roupa é kirshis – a animorfa virou-se para as almofadas e disse: - Aquilo é methur.

Maya passou grande parte da noite ensinando algumas palavras em Ídier a Sarah, como: espada que era aziris, bainha que era mandos, neve que era dana, Woriok que era daegil e muitas outras. Quando começou a ficar tarde a Esbael voltou para seus aposentos e adormeceu. Ela sentia falta de sua família, mas não adiantaria nada ficar se lamentando por ter encontrado o livro e por ter sido transportada para aquele mundo. No momento, Sarah queria se concentrar em seus aprendizados – que por sinal, ela estava adorando, apesar das dores corporais e hematomas.

Na manhã seguinte, já acostumada com o ambiente nebuloso da montanha, Sarah despertou, apanhou sua espada e se dirigiu para a barraca de duelos. Seu braço não doía mais como antes e ela estava bem disposta naquele dia. Como sempre, encontrou Urius na entrada e juntos caminharam para dentro da tenda. A primeira fase de seu treinamento a havia ajudado a aprender como se manejava uma espada e a luta de verdade do dia anterior aperfeiçoou suas habilidades e fez com que ela se acostumasse com o peso da arma.

Desta vez, Sarah já sabia lutar muito bem e a única coisa que ela precisava era melhorar o que já havia aprendido nos dias em que estava na montanha, pois em sua opinião, ainda era uma amadora. O prazo estipulado havia passado e logo, Maya e Sarah se aprontavam para partir rumo ao vilarejo Ar’mead. Os Curiors as presentearam com dois Worioks para facilitar a viajem. Mais uma vez a Esbael agradeceu a Ergin por sua espada, em seguida, ambas se despediram de todos os habitantes, montaram em seus “lobos voadores” e saíram voando das montanhas Leeuw Tand.

O vilarejo ficava a três dias de caminhada das montanhas, mas com a ajuda dos Worioks economizariam um dia de viajem. Ambas voaram até o anoitecer e acamparam nos arredores da floresta Flóriur. Sarah cuidou de fazer a fogueira e Maya caçou dois coelhos, como sempre a animorfa que arrancou a pele do animal e cortou a carne. Por estar naquele mundo há quase vinte dias e grande parte deste tempo havia passado nas montanhas e nas horas vagas ajudava os Curiors a caçar, Sarah já tinha se acostumado com aquele ato que antes julgava maldoso e repugnante.

Elas liberaram suas montarias para que fossem em busca de seu próprio alimento, depois decidiram que Maya ficaria com o primeiro turno da vigília e Sarah com o segundo. Na manhã do segundo dia de viajem, ambas se levantaram e foram voando até o vilarejo, aonde chegaram ao período da tarde. Ao pousarem, ambas desmontaram dos Worioks e, segurando as rédeas, os conduziram para a entrada do vilarejo que estava completamente destruído. As vigas das casas estavam queimadas e estas não apresentavam mais telhado. Havia diversas pessoas mortas espalhadas por entre as construções carbonizadas e o ar que Sarah e Maya respiravam cheirava a decomposição.

Caminharam separadamente pelo vilarejo à procura de sobreviventes. Sarah alisou o dorso de Nostyec e largou suas rédeas, para andar com mais liberdade por Ar’mead. Ao observar o solo seco e um tanto arenoso ela notou gotas de sangue que se espalhavam por grande parte do vilarejo. Mais adiante, a Esbael notou pegadas que marcavam o chão, ficou na dúvida se seriam de alguém enviado pelo rei ou de algum possível sobrevivente. Franziu a testa enquanto pensava na questão, até que decidiu segui-las.

Como Urius havia lhe ensinado, ela caminhava com a mão repousada sobre o punho da espada, a espreita de qualquer sinal de perigo. Estava perto agora, ela podia ouvir soluços vindos de uma das casas queimadas, mas esta se encontrava em uma situação melhor do que as demais.

Apertou tensamente o punho da espada de modo que as pontas de seus dedos ficaram brancas, seu coração palpitava como nunca, o medo e a ansiedade tomavam conta de seu corpo – se fosse algum enviado do rei seria sua primeira batalha pra valer e isso a assustava um pouco. Respirou profunda e longamente, retirou um pouco da lâmina da espada de sua bainha, bem devagar e empurrou a porta com toda sua força – como a construção estava frágil, a porta caiu. Sarah viu se relance uma sombra esconder-se atrás de barris que estavam um pouco destruídos. A Esbael desembainhou sua espada e berrou:

- Saia! Quem quer que seja!

Sarah caminhou lentamente até o esconderijo do ser misterioso, ergueu sua espada e saltou procurando pegá-lo de surpresa até que viu... Uma criança encolhida de medo. Com um olhar de doçura, a jovem embainhou sua espada e acocorou-se, estendendo a mão.

- Não tenha medo – a criança retirou as mãos do rosto coberto de fuligem. – Eu não vou te machucar – a garota hesitou, depois pôs os cabelos mal cuidados, mas lisos, para trás das orelhas, colocando a mão pequena sobre a de Sarah. – Tudo bem, venha comigo.

A Esbael conduziu a menina até Maya, que ainda explorava Ar’mead em busca de sobreviventes. A animorfa segurava uma folha um tanto envelhecida que mais lembrava papiro, ela se virou e disse:

- Veja o que está dizendo aqui:

“Este vilarejo foi condenado por bruxaria e traição e portanto, será queimado e encontrará seu destino em uma terra sombria e ardente. Que isto sirva de exemplo, qualquer um que se envolver com Bruxos ou Rebeldes terá o mesmo destino.”

- O que isso quer dizer? Oberon é um bruxo também!

- Você quer mesmo comparar a nós, meros súditos, ao rei? – indagou Maya lançado a folha para longe.

- Infelizmente não pudemos fazer nada, mas veja o que achei – disse Sarah enquanto a garota se escondia atrás de suas pernas. – Uma sobrevivente.

- Olá, como é seu nome pequenina? – perguntou a animorfa abaixando-se com as mãos apoiadas nos joelhos.

- Pode nos dizer – disse a Esbael afastando-se de modo que a menina ficasse visível. – Só queremos ajudar.

A garotinha apertou suas pequenas mãos, uma na outra, engoliu seco e disse:

- Tirvanna.

- E quantos anos a Tirvanna tem? – perguntou Maya.

A menina expôs os cinco dedos da mão. A animorfa levantou-se e fez um sinal com o olhar para Sarah que disse:

- Você gostaria de ver uma coisa muito legal? – a garotinha assentiu com a cabeça. – Nostyec! – berrou a Esbael.

O Woriok apareceu correndo e parou a uma distância razoável delas, nem muito longe nem muito perto. A menina aproximou-se cautelosamente do animal e Sarah a ajudou a entender que ele não iria machucá-la, Tirvanna tocou na cabeça de Nostyec, acariciando-o.

- Você pode cuidar bem dele até que eu termine tudo por aqui?

- Sim senhorita! – disse a menina sorrindo.

Sarah pegou-a no colo e fez com que montasse no Woriok.

- Leve-a para dar uma volta, mas sem voar! – o animal bufou e se retirou.

A jovem caminhou até Maya com um olhar exausto estampado em seu rosto.

- Encontrou mais alguém? – Sarah balançou negativamente a cabeça.

- Mais ninguém.

- Nem eu – fez uma pausa. –, aqueles miseráveis!Como puderam fazer isso com mulheres e crianças?Graças aos Deuses esta menina se salvou ilesa.

- Eu não quero nem pensar o que poderia ter acontecido a ela aqui sozinha durante dois dias, ainda mais se os guerreiros ou os Muirakans aparecessem.

- Nem me fale! – disse a animorfa colocando a mão sobre o rosto. – Vamos, devemos enterrar estes corpos, não podemos deixá-los desse jeito.

- Os corpos! – berrou Sarah.

- O que têm eles?

- Eu deixei a menina passear por aí e o vilarejo está repleto de corpos, como ela vai se sentir se por acaso encontrar um parente por aí?

- Vamos atrás dela!

Maya e Sarah pegaram a direção que a menina havia tomado com Nostyec e a encontraram debruçada sobre um cadáver, com o Woriok de pé ao seu lado. Mesmo de longe, ambas podiam ver que Tirvanna soluçava. A garotinha virou a cabeça em direção as duas, lágrimas escorriam por seu rostinho arredondado e a ponta do nariz estava vermelha. Tirvanna se levantou, correu para Sarah e a abraçou. A Esbael sentiu-se fragilizada como se soubesse exatamente como a menina se sentia.

- Vamos enterrá-los logo e sair daqui! – disse Maya.

- Vamos – concordou Sarah com os olhos cheios d’água. – Fique com Nostyec, ele vai cuidar de você – disse para a menina, que correu em direção ao animal.

Sarah olhou para todos aqueles corpos espalhados, pensativa. Atacar mulheres e crianças daquela forma era o ato de um covarde e desumano, e ela não podia suportar isso. Respirou fundo enquanto buscava coragem dentro de si para tocar em um daqueles corpos, Sarah nunca tinha visto um cadáver antes e enterrá-los seria muito difícil para ela, mas sabia que era o mínimo a ser feito.

A Esbael caminhou até Maya e juntas, cavaram covas para que pudessem colocar os cadáveres. Passaram longas horas ali, cavando e enterrando até que o último deles foi colocado, Tirvanna ajoelhou-se e fez uma prece aos Deuses para que cuidasse de seus pais que agora não estavam mais entre ela. Quando a tarde começou a chegar ao fim, as três adentraram a floresta de Flóriur e lá acamparam. Depois de uma boa refeição, Tirvanna adormeceu no colo de Sarah.

- O que faremos agora?

- Vamos ter que partir para Delaetar e informar aos bruxos de nossa condição, tenho certeza que vão contatar o maior número de aliados possível. Cada um deles saberá o que fazer.

- E quanto a ela?

- Nós vamos levá-la para Flóriur, onde poderão cuidar dela, não podemos trazê-la conosco é muito perigoso. Além disso, deve se concentrar em seu treinamento.

- Eu sei disso, vamos dormir, hoje foi um dia exaustivo.

Sarah retirou a menina de seu colo e acomodou-a em outro lugar enquanto sentava-se em um tronco. Maya dormiu e a Esbael ficou de vigília. Naquela noite, ela sentiu como se uma parte dela tivesse sido arrancada, sentia falta de sua família e o que viu no vilarejo só aumentara sua angústia. Não conseguia nem pensar no fato de que ficaria para sempre naquele mundo e que antes partir, não conseguiu despedir-se nem dizer a seus pais o quanto os amava.

Sentia-se amedrontada em um lugar perigoso e que ainda era estranho para ela. Temia perder as únicas pessoas que conhecia ali nas mãos do rei Oberon e que seu jeito simpático e bondoso fosse corrompido aos poucos por tais atos vis, tornando-se uma pessoa fria e robótica com apenas um objetivo: matar e destruir tudo relacionado ao rei. A jovem ouviu um balançar de galhos e algumas folhas caíram do alto das árvores. Os Worioks ficaram de pé e, mostrando todos os seus dentes, gruíam como cães ferozes. A Esbael arrastou-se calmamente até Maya e a despertou fazendo sinal para mostrar de onde vinham os barulhos. A animorfa ficou apoiada sobre um dos joelhos e Sarah apertou a alça de sua mochila enquanto se aproximava de Tirvanna, protejendo-as. Maya e Sarah estavam preparadas para a luta.

Capítulo 6 - O treinamento de Sarah

Sarah caminhou lentamente enquanto segurava a pele de tigre envolvida em seu corpo com Maya, na forma de raposa do ártico, bem atrás. Ela olhou ao redor. A grande muralha escondia na neve algo muito menor: não havia grandes casas próprias para aquele ambiente gélido, como a jovem havia pensado. Na verdade, as moradias eram pequenas tendas improvisadas com estacas de madeira e tecido, mas muito bem feitas, pois nem aquele vento forte as abalava. De certa forma lembravam o acampamento de um exército. Sarah notou algo estranho: não havia crianças por Teralar, apenas adultos.

- Onde estão às crianças Maya? – murmurou.

- Para os Curiors, isso não é comum. É muito raro nascer um bebê aqui, não é toda mulher que pode ter filhos. Eles são Ucanaíns, parentes distantes dos humanos que envelhecem mais lentamente, por isso têm mais tempo para se reproduzir. Quando um bebê nasce eles fazem uma festa para agradecer aos Deuses – olhou para a companheira com os olhos azul-celestes, os dentes um tanto pontudos de raposa a mostra. – Afinal, se não fosse por isso estariam extintos.

A jovem ficou distante por alguns segundos, pensando sobre o que a animorfa havia dito. Deveria ser horrível viver em um lugar onde não havia crianças, sem as travessuras que elas aprontavam e sem o prazer de cuidar de um bebê. Acompanharam a muralha que rodeava a cidade até o final, chegando a uma tenda. Rhotur estendeu a mão deslizando o pano que cobria a entrada para que as duas pudessem entrar. Lá dentro havia almofadas feitas com pele de animal e alguns cálices de madeira, não tinha nenhuma mesa ou cadeira, apenas roupas dobradas no canto da barraca e algumas armas como: uma espada e duas adagas que estavam jogadas pelo chão, próximas as almofadas.

Ele bateu em suas roupas felpudas, procurando retirar toda a neve que estava grudada nela. Em seguida retirou aquele amontoado de vestes que cobriam todo o seu corpo, deixando apenas as mais leves feitas de couro, depois as colocou sobre as almofadas. Virou-se. Sarah ficou impressionada com a fisionomia estranha do Curior, nunca tinha visto algo tão diferente. Rhotur tinha os cabelos completamente grisalhos e longos presos em um rabo de cavalo folgado, tinha dentes caninos maiores do que o normal – lembravam os de um vampiro – e suas pupilas em forma de fenda se destacavam nos olhos, que vinham de um azul tão claro que chegava quase a ser branco. Apesar de ter uma beleza muito diferente do que Sarah estava acostumada, ele aparentava ter uns trinta anos.

Rhotur caiu com as costas sobre as almofadas e gesticulou para que as duas se acomodassem. Maya voltou para sua forma humana e sentou ao lado da companheira de viajem. Estava com uma expressão austera nos rosto parecia que, apesar do frio, estava suando. Sarah se perguntava se a animorfa ainda estaria sentindo as dores do ferimento causado por aquelas criaturas. Afinal, seu rosto, ainda mais pálido do que o normal e o suor, apontavam para isso.

- Então – fez uma pausa –, você é a nova Esbael?

- Sim.

- Ela precisa aprender como manejar uma espada Rhotur – disse Maya voltando os olhos para Sarah. – Vrafer mod baror kishta (Ou ela estará perdida).

Sarah franziu a testa ao ver que a companheira complementara em ídier.

- Não se preocupe, esta é a nossa especialidade. Não é todo mundo que sabe lutar como nós, Curiors.

- Eu sei disso, por que você acha que a trouxe aqui?

- Então – fez uma pausa. – Vamos começar?

Ele pôs-se de pé e começou a vestir suas roupas novamente.

- Agora?!Mas eu acabei de chegar! – disse Sarah dando um salto.

- Ninguém me disse nada sobre pegar leve com você. Venha, quero ver até onde você vai com a espada.

- Não seja por isso, eu mesma respondo, não sei de nada!Nunca nem toquei eu uma – respondeu ela ligeiramente.

- Nunca pegou em uma espada – ele repetiu, dando uma gargalhada e observando o olhar sério da garota, disse: – Você está brincando, não é?

Ela balançou a cabeça em sinal negativo.

- Bem, ela é toda sua – disse Maya voltando para a forma de raposa do ártico. – Posso ficar naquela tenda que fiquei da última vez não é?

- Sim pode, não há ninguém vivendo lá – ainda estava boquiaberto com a resposta da garota. Não havia um adulto ou criança em Amagar que jamais tivesse tocado em uma espada. – Vou arrumar algumas roupas para esta jovem.

- Aonde você vai Maya?

- Enquanto você está treinando vou checar o quão perigoso as coisas estão. Retornarei dentro de alguns dias. Você vai me encontrar em uma tenda próxima daqui – a raposa caminhou para fora da barraca, deixando Sarah e Rhotur a sós.

O Curior olhou em volta. Ele apanhou as roupas que estavam dobradas no canto da tenda e entregou-as para Sarah. Quando a garota as vestiu, eles caminharam para fora. Durante o percurso na neve a jovem notou que diversos sons se misturavam no ar, havia um tilintar mais parecido com o choque entre dois metais e um grunhido que ela jamais ouvira antes, olhou em volta procurando encontrar a fonte. Antes que pudesse localizar alguma coisa, Rhotur colocou a mão em seu ombro, para que ela parasse. Ele se aproximou de um suporte repleto de pequenas espadas de madeira.

Analisou cada uma delas, desde o cabo – envolvido em ataduras, umas mais estragadas do que as outras – até os pequenos arranhões na falsa lâmina. Enfim, escolheu duas delas e, ao entregar uma para Sarah, caminhou para dentro de uma das maiores tendas em Teralar. Quando a jovem o acompanhou, mal pôde acreditar no que estava vendo: havia diversos Curiors espalhados pela barraca e treinavam com espadas de verdade, todos eles tinham praticamente a mesma aparência e a única coisa que os diferenciava era o corte de cabelo. Sarah estava tão intrigada com aquela raça que os fitou por alguns instantes até Rhotur chamar sua atenção.

- Vamos ver como você se sai – disse ele retirando suas roupas.

O Curior estava com uma alegria notável em seu rosto. Sarah retirou seus agasalhos, ficando apenas com as vestes de couro. Ficava impressionada como cada tenda na cidade se mantinha aquecida, apesar de serem um tanto frágeis. Lá de dentro nem parecia que o vento ártico era forte. Rhotur empunhou a espada de madeira, ficou em posição de ataque e disse:

- Vamos! Ataque-me!

Com hesitação ela obedeceu. Ergueu a espada acima da cabeça e o atacou com uma força brutal. Sem demonstrar esforço algum, ele levantou sua arma com uma das mãos e a bloqueou, segurando o braço da garota ele lançou-lhe um sorriso malicioso. Sarah arregalou os olhos e o Curior golpeou a dobra de seu joelho, forçando-a a cair sobre eles. A jovem mordeu os lábios inferiores, procurando conter a dor que estava sentindo. Nunca imaginou que algum dia alguém a acertaria com um pedaço de madeira.

- Vamos tentar novamente – disse ele observando a garota ainda de joelhos no chão. – O que está esperando?Levante-se!

Sarah ficou de pé e começou a movimentar sua espada de um lado para o outro, produzindo um som ao cortar o ar. Rhotur dava pequenos saltos para trás desviando de cada golpe. Ele deu um giro e a bloqueou de uma forma tão rápida que a garota mal conseguiu perceber. O Curior passou o braço sobre a espada de madeira da garota e a segurou enquanto puxava, lançando Sarah sobre o chão, cruzou as duas armas – de modo que lembrassem a forma de uma tesoura – em volta do pescoço dela e disse:

- Derrotada! Pelos Deuses você é péssima! – entregou a espada a ela, ajudando-a a se levantar. – Não serão espadas de madeira em uma batalha e nem eu lutando contra você. As pessoas que vai enfrentar são muito piores, elas não têm piedade e usufruem de todos os artifícios.

Enquanto ele caminhava ao seu redor, Sarah o seguia com os olhos.

- Vamos tentar mais uma vez!

Rhotur ergueu a arma e começou a dar vários golpes consecutivos. Instintivamente, a jovem colocou sua espada na frente do rosto, procurando se defender. Ele era rápido demais para ela, manuseava o pedaço de madeira com graciosidade e leveza assim como Sarah usava um lápis ao rabiscar um pedaço de papel. Algum tempo se passou e após várias derrotas, onde ela acabava sempre se levantando e apanhando de novo, começou a ficar impaciente. Estava cansada de apenas ficar se defendendo. Apertou o pedaço de madeira de forma que as pontas dos dedos ficaram brancas e, com um grito de raiva, tentou atacar as costelas do Curior, que sorria satisfatoriamente. Com um movimento rápido, ele se agachou, fazendo com que Sarah se desequilibrasse e em seguida, golpeou as costas e o joelho da garota que voou pelo ar e caiu ao chão, produzindo um som abafado.

- Desta maneira vai ficar aleijada antes de ser morta! – ao franzir a testa, ele a reprimiu: - Deixe de brincadeiras e lute a sério! Ou então quando precisarmos de ajuda matará a todos nós com seu jeito de donzela indefesa!

Sarah ficou sentada e, ao apertar sua espada, uma lágrima escorreu de seu rosto. Naquele momento começou a se sentir de uma maneira que nunca mais havia se sentido: pequena e incapaz. Ao notar que estava mexendo com as emoções da garota, ele percebeu que chegara onde queria e com um sorriso disse:

- Levante agora e lute sua fraca!

O peito da jovem se movia de forma rápida enquanto ela tentava conter o choro. Todos, que antes estavam treinando começaram a encará-la. Uma chama de determinação agora brotava em si. Sarah se lembrou de todos aqueles que a reprimiam na escola, de quantas vezes segurou suas emoções quando Regina a humilhou. Enxugou a lágrima que havia escorrido com as costas do braço e, lentamente, começou a ficar de pé. Rhotur a encarava com os olhos azuis e penetrantes, a espera da primeira reação: ela se voltou para ele com uma expressão diferente no olhar, estava com os olhos um pouco apertados e os dentes se pressionavam tanto que o maxilar parecia mais grosso. Definitivamente ela tinha mudado.

Nem um dos dois se movia, apenas esperavam o primeiro movimento. O Curior deu um largo sorriso de modo que seus dentes de vampiro ficassem à mostra, em seguida, atacou. As espadas se chocaram: plak!

- Isso mesmo! – plak! – Agora está ficando interessante!

Ele tentou golpeá-la na costela, mas a jovem foi mais rápida e deu um salto para trás enquanto erguia os braços, depois o atacou no ombro e na dobra do joelho, forçando-o a cair sobre o mesmo. Pôs a espada no pescoço de seu adversário e, ao sorrir, disse:

- Derrotado! Desta maneira vai ficar aleijado antes de morrer - Rhotur não pôde deixar de conter uma gargalhada.

- Você conseguiu libertar a fera que estava adormecida – fez uma pausa enquanto ficava de pé. – Acho que já vi o bastante de você por hoje.

Sarah abaixou sua espada seguida de um longo suspiro e o Curior deu-lhe um forte golpe nas costelas. Ela reagiu instintivamente ao ataque, colocando sua arma no pescoço do adversário. A jovem agora prendia a respiração, na inútil tentativa de conter a dor. Revoltada berrou:

- Por que fez isso?!

- Não confie em ninguém e jamais baixe sua guarda!

Ele a atacou novamente e a garota se defendeu com dificuldade, pois cada golpe que defendia era como uma pontada forte nas costelas. Uma dor insuportável tomava conta dela. Estava respirando com dificuldade por causa do ritmo frenético da luta, se ao menos tivesse a chance de se recompor, poderia voltar ao normal bem rápido, mas se continuasse daquela maneira iria ser derrotada, de novo. Sarah percebeu que estava fazendo tudo da mesma forma outra vez, não atacava, apenas se defendia, e desta forma a luta sempre acabava do mesmo jeito: com ela estatelada no chão. Enfurecida, a jovem girou o corpo para o lado fazendo com que ele errasse o golpe. Em seguida, atacou a arma de Rhotur lançando-a para o alto e atacando as costelas dele. O Curior caiu de joelhos.

- Agora estamos quites – disse ela estendendo a mão para ele.

Os Curiors que assistiam à luta começaram a aplaudir e Rhotur deu um largo sorriso para Sarah, aceitando sua ajuda para ficar de pé. Depois colocou a mão sobre as costelas enquanto contraía o rosto com a dor que estava sentindo. Ele se aproximou dela, colocando a mão em seu ombro disse:

- Agora você está mais do que pronta.

- Para que?

- Para iniciar seu treinamento com espada.

- Mas pensei que...

- Não achou que tínhamos começado, achou? – disse ele caminhando para longe. – Isto foi apenas um teste para ver se você era merecedora de aprender a arte de lutar com a espada. Além disso, não sou a pessoa mais indicada para te ensinar, meus noventa e sete anos me tiraram o vigor que tinha quando era mais jovem.

Sarah arregalou os olhos: “Noventa e sete?! Pensei que ele tivesse uns trinta”.

- A pessoa mais indicada para ser seu treinador é meu filho, Urius.

Ele colocou novamente suas vestes felpudas e Sarah fez o mesmo, acompanhando-o para fora da tenda de duelos. Ficaram frente a frente.

- Seu coração é forte Sarah-rogesh, você pode fazer coisas grandiosas para todos nós. Por hora deve descansar, mas amanhã bem cedo esteja aqui para iniciar seu treinamento – deu-lhe um sorriso. – Bariorir mod fer roejir orkalesh – fez uma reverência.

- O que você disse? – indagou ela, franzindo a testa.

- Eu disse: Que as estrelas a iluminem esta noite.

- Já me disseram isso uma vez, é uma benção não é?

- Sim, é.

- Esta língua que vocês falam é muito engraçada.

- Um dia você vai ter que aprendê-la, mas receio que não será conosco. É só ter paciência, tudo há seu tempo – ele caminhou para longe.

- Rhotur espere! Como faço para tomar um banho?

- Você deve ir até o lago Mu’raën.

- Mas é muito longe, eu teria que descer esta montanha inteira!

- Isso não será preciso, eu te darei um Woriok.

- Um woquê?

- Um Woriok, como você acha que conseguimos construir esta cidade e trouxemos todas essas coisas para cá?Os Worioks nos ajudaram – ele deixou escapar uma gargalhada. – Vá descansar naquela tenda onde conversamos e daqui a algumas horas, antes de anoitecer, mando te acordarem e deixo algumas roupas novas para você.

Sarah assentiu, concordando, Rhotur fez uma reverência e caminhou para longe. Ela andou calmamente enquanto admirava a neve que caía cobrir tudo de branco, até que chegou a sua tenda. Ao entrar, retirou com dificuldade as vestes felpudas pois eram pesadas e suas costelas ainda doíam a cada movimento que fazia. Atirou-as para longe e caiu sobre a cama de almofadas. Estava com o corpo tão dolorido e repleto de hematomas, que não demorou muito para que caísse no sono. Quando dormia, a jovem mergulhava em um refúgio, em sua maioria, cheio de sonhos bons e recordações de sua terra natal, mas ultimamente começavam a ser perturbadores.

As memórias que tinha agora, aquelas que vinham de Elenwë, eram muito sofridas e permaneciam impregnadas em sua mente assim como a tatuagem recém formada em seu pulso. Às vezes se perguntava se a mulher, mesmo estando morta, queria lhe dizer alguma coisa. Deixou que as lembranças fluíssem e logo, viu-se mergulhada em mais um daqueles sonhos estranhos. Desta vez, a antiga Esbael estava caminhando em um belo jardim enquanto acariciava as mais diversas flores de forma delicada. Seu lindo sorriso refletia a imensa felicidade que sentia naquele lugar, por alguma razão, o ambiente trazia a Sarah certa paz interior.

Sentiu como se algo a puxasse com força para baixo, vários flashes escuros surgiam rapidamente. Ela lutava contra a força que a puxava, tentando permanecer naquele belo jardim, mas fora mais forte do que ela e logo, se encontrava... Em sua tenda? Abria e fechava os olhos como se tentasse avistar outra coisa além de almofadas. Ao olhar para o lado viu que um Curior de cabelos curtos a fitava com uma expressão doce nos olhos claros. A garota deu um salto para o lado e o rapaz se movimentou para trás, tão assustado quanto ela.

- Sinto muito rogesh, não era a minha intenção assustá-la – fez uma pausa. – Estava tentando acordá-la há alguns minutos, já faz algumas horas que você está dormindo desde que falou pela última vez com meu pai.

- Algumas horas?!Quantas? – ela ficou de pé e tateou em busca e suas roupas.

- E-eu não sei, não temos nada que conte exata...

- Peraí, você disse que falei com seu pai? – franziu a testa. – Então você deve ser...

- Urius – respondeu ele dando uma gargalhada e ficando de pé. – Urius Vraegr.

O rapaz era alto e, apesar da beleza exótica que sua raça possuía, ele era muito bonito. Sarah estava extasiada, Urius aparentava ter a sua idade e ela jamais conversara com um garoto tão bonito com a mesma idade que a sua, mas assim como se enganou com Rhotur, poderia estar enganada com o filho dele. Ela deu um sorriso e apertando os olhos de curiosidade disse:

- Quantos anos você tem Urius?

- O que?! – espantou-se ele. – Não é educado perguntar a idade dos outros.

- Sei disso, mas sua raça me intriga. Espantei-me ao saber que seu pai tem noventa e sete anos, enquanto a você?

- Tenho trinta e quatro anos, sou o filho mais novo.

- Minha nossa!Tá me zoando né?! – espantou-se. – Esperava uns vinte, mas trinta e quatro?

- Palavras estranhas, o que isto significa?

- É só força de expressão – respondeu ela ainda boquiaberta. – Você disse que era o mais novo, quantos irmãos você tem?

- Só mais um, Raldor, ele tem cinqüenta anos. Foi o penúltimo bebê que nasceu por aqui.

- Quem foi o último?

- Bem, eu.

- Quer dizer que o último bebê que nasceu foi há trinta e quatro anos? – ele assentiu. – Nossa!Quando Maya me disse que era raro nascer um bebê aqui esperava que demorasse uns dois anos no máximo, não isso tudo! – pestanejou como se tentasse voltar para a realidade. – Então, o que veio fazer aqui?

- Quase me esqueci, vim aqui para te entregar estas roupas – entregou uma pequena bolsa de couro. – Aí dentro tem uma calça para que você use amanhã no treinamento – ele pigarreou e ao encher o peito de ar disse: - Quero que saiba que estou honrado em treiná-la.

Sarah deu um sorriso e ele pareceu envergonhado.

- Muito obrigada.

- Venha comigo, dar-te-ei um Woriok para que possa descer até o lago Mu’raën e tomar o banho que deseja. Não podemos demorar ou vai anoitecer e será perigoso se sair por aí com os Muirakans a espreita.

Ambos vestiram seus agasalhos e saíram da tenda. Sarah segurava a pequena bolsa, que lhe havia sido entregue, sobre o ombro.

- Você falou Muirakans não foi? – ele assentiu. – Poderia me explicar o que são?Da última vez que os vi fiquei tão atordoada que nem me preocupei em perguntar.

- São criaturas das trevas criadas com magia negra, eles têm sede sangue e matam tudo o que encontram no caminho. Não sei o porquê, mas os Muirakans têm uma estranha aversão a luz do sol e a animais selvagens como leopardos, tigres e panteras.

- Agora sei por que Maya os derrotou tão facilmente na floresta – disse ela para si mesma. – Sabe de mais alguma coisa?

- Bem, sei que não são muito numerosos, pois o número de animorfos cresce cada vez mais e eles estão sendo derrotados muito facilmente. Por isso o rei não se dá ao trabalho de criar muitos – o rapaz pareceu distante por um momento. – Temo que algo, pior do que os Muirakans apareça.

- Em minha opinião você não deveria esquentar a cabeça com novos e possíveis inimigos, devemos nos concentrar no presente e como não somos animorfos, estas criaturas continuam sendo perigosas para nós. Sofrer por antecipação pode interferir nas lutas futuras.

- Tem razão rogesh, és mais sábia do que aparenta – ele parou de caminhar. – É aqui.

Sarah olhou para o lado: havia uma cerca enorme que mais parecia um curral, onde três animais estranhos caminhavam calmamente. Um deles grunhiu e a jovem identificou na hora como um dos sons que se misturaram no ar quando ela estava passeando com Rhotur. Eram seres um tanto estranhos. Lembravam lobos da neve, mas a cauda era fina como a de um cão dálmata sem pêlo algum e sim, espinhos. Seus caninos eram tão grandes quanto os de um tigre dente de sabre e tinham a altura de um cavalo. O animal se aproximou, Sarah se afastou. Ele ficou de pé sobre as patas dianteiras e abriu suas grandes asas de pássaro.

- O que é essa coisa?

- Não fale assim! – ao se aproximar dela, Urius sussurrou: - Ou ele não concordará em levá-la.

- Tudo bem, eu sinto muito – desculpou-se ela olhando para o animal, que pareceu desconfiado.

- Este é um Woriok – explicou Urius. - Nossos ancestrais encontraram esta raça aqui nas montanhas quando a escalaram pela primeira vez e decidiram construir esta cidade – fez uma pausa acariciando o pescoço do lobo, que fechava seus olhos com o afago – Teralar não existiria se não fosse por eles, só aqui estamos seguros das criaturas enviadas por Oberon.

- Posso acariciá-lo?

- Você não se importa não é Nostyec? – o animal soltou um gemido – Vá em frente.

Sarah olhou para os olhos castanhos do Woriok e ergueu a mão na altura do animal, depois hesitou, mas por fim tocou seu dorso – ele fechou os olhos. Seu pêlo parecia uma seda branca que ficava invisível no meio de toda aquela neve da montanha. Urius observava o contato dos dois e a garota sorria com a exuberância daquele ser magnífico. O Woriok agitou a cabeça e ela retirou instintivamente a mão dele, o animal lambeu o rosto da Esbael e esfregou a cabeça em seu peito, mostrando que não a faria nenhum mal.

- Ele gostou de você – comentou Urius.

- Ele é lindo – disse ela sorrindo.

- Agora ele está disposto a transportá-la para onde quiser ir, é só dizer o lugar. Os Worioks conhecem todo o reino Koelsig.

Urius virou-se para um homem que colocava comida para os animais e mencionou algo em Ídier, ele andou até a cerca do curral e retirou as rédeas que estavam penduradas caminhando até o Woriok, colocando-a em sua boca e em seguida estendendo-a até seu dorso.

- Monte – disse Urius.

- Montar?!

- É o único método para você chegar até o lago sem ter que descer a montanha inteira novamente. Não há perigo algum, Nostyec é nosso melhor Woriok.

Montar naquele bicho não poderia ser mais assustador do que montar em um dragão como já havia feito, foi o que Sarah pensou. Ela deu a volta no curral, entrando por uma portinhola. Em seguida aproximou-se do Woriok, que abriu suas enormes asas e agachou, para que ela subisse nele. Com hesitação, a jovem montou e deu ordem para o animal ir até o lago, ele correu passando rapidamente pelo portão. À medida que iam se afastando, a entrada da cidade e os guardas dela começavam a ficar menores, não demorou muito tempo para que Sarah pudesse ver a ponte de madeira que ela e Maya haviam atravessado.

O Woriok aumentou tanto a velocidade que até mesmo som de sua respiração podia ser ouvido. Ele começou a tomar outra direção sem parecer que atravessaria a ponte. Sarah começou a ficar preocupada, perguntava-se aonde o animal estava indo. Quando chegaram a uns dois metros de distância da ponte Nostyec deu um enorme salto caindo na grande fenda que se formava na montanha. Sarah começou a gritar, sentia um frio terrível na boca do estômago, o local de onde caíam era assustadoramente alto e ela apertou as rédeas. À medida que iam rapidamente se aproximando do solo a neblina que envolvia o topo da montanha começava a desaparecer e as imagens voltavam com nitidez. Estavam muito próximos do solo agora “Tô lascada!” – pensou ela. Neste momento, o Woriok abriu suas asas e ambos começaram a planar. A jovem sentiu como se seu coração fosse sair pela boca do susto que havia tomado e o animal bufava, como se estivesse rindo dela.

Ele fez um leve movimento, inclinando o corpo e assim, dando a volta na montanha. Cruzou o vale de vegetação rasteira e, não muito longe dali, estava o lago. O animal bateu as asas subindo um pouco e depois descendo, até pousar calma e graciosamente dando a impressão de ser tão leve quanto uma pluma. Sarah respirava de modo frenético. Definitivamente voar com um Woriok era muito pior do que com um dragão, ainda mais com um tão travesso quanto Nostyec. A garota o encarou por alguns instantes, depois abriu um sorriso e acariciou sua cabeça.

- Você quase me matou de susto! – o animal apertou os olhos como se estivesse envergonhado - Até que foi divertido. Agora fique aqui, eu já volto.

Nostyec obedeceu. Sarah largou a bolsa de couro no chão e caminhou até a beira do lago aos poucos, retirou os agasalhos e as roupas de couro – tomando todo o cuidado para que não estivesse sendo observada. Depois, deu um mergulho. Respirou fundo ao sentir a água gelada tocar-lhe a pele, seu queixo se debatia sem parar e os lábios já estavam roxos. Passou uns vinte minutos banhando-se naquela calmaria e começou a pensar sobre os sonhos a que vinha tendo nos últimos dias. “Estes sonhos são muito estranhos, são como flashbacks em minha mente, é como se as recordações estivessem vindo de trás para frente” – pensou. – “Primeiro eu a vi morrer, depois ela estava em uma cela e agora, num belo jardim. Ah Elenwë, o que quer que eu faça afinal?”. Sem se dar conta, o tempo começou a passar mais rápido do que o normal e logo, o sol começava a se esconder por trás dos diversos morros e montanhas que cercavam aquela região.

Sarah saiu da água e como não havia toalha alguma, se enxugou com as roupas felpudas que usara na neve. Depois abriu a bolsa que trouxera consigo: lá dentro tinha uma calça feita de couro e um corpete vermelho com pequenas cordas nas laterais. Após vestir as roupas de baixo, a jovem colocou a calça de couro e logo depois, o corpete. Era meio complicado de se usar, pois tinha que segurar o busto enquanto ajustava as cordas no lado das costelas, que ainda estavam doloridas, mas Sarah logo pegou o jeito. Ao terminar, ela se ajoelhou na beira do lago e encheu as mãos com um punhado de água, bebendo-a. Em seguida pegou mais um pouco e molhou o rosto. Enquanto passava uma das mãos sobre o queixo, procurando reter a água que caía, notou um reflexo na água que definitivamente não era o seu, ela se virou rapidamente para ver quem estava atrás dela, mas não havia ninguém ali, a não ser ela e Nostyec.

A garota colocou a mão sobre a testa e fechou os olhos como se o reflexo na água fosse fruto de sua imaginação. Respirou fundo e abriu-os de novo, a mulher estampada na água permanecia lá, encarando-a com seus olhos verdes tristonhos, lágrimas escorriam por seu rosto, era como se ela tentasse lhe dizer algo, mas não conseguia. Aquela mulher era... Elenwë. Sarah não poderia ficar ali mais tempo ou iria anoitecer, sem mencionar que o reflexo a estava assustando mais do que os sonhos que tinha com a mulher.

Ela guardou as roupas de couro que ganhara dos Endirvis dentro da bolsinha, depois se levantou, vestiu suas roupas de frio e correu até Nostyec, ignorando o reflexo que vira. Em pouco mais de meia hora os dois já estavam novamente no topo da montanha e, cansado de voar, o Woriok apenas caminhava. Ao passarem pelos portões, Sarah entregou as rédeas para o homem que cuidava dos animais e caminhou até sua tenda, jogando a bolsa em qualquer lugar, retirando os agasalhos e caindo sobre as almofadas. Ela verificou se a mochila onde guardava o livro – que escondera sob as almofadas – estava bem, depois se pegou distraída em seus pensamentos, até adormecer mais uma vez.

Seu sonho a transportou novamente para o jardim aconchegante, cada planta ali aparentava ter pelo menos um metro de altura e todas juntas formavam um arco-íris de cores. Elenwë parecia feliz ao passear por aqueles campos, algum tempo depois ela se virou e foi ao encontro de alguém que a chamava, mas Sarah não conseguiu ver quem era. Por ser uma pessoa alta de corpo atlético, ela deduziu que seria um homem, a única coisa que conseguia ver era seu cabelo longo cor de cobre e sua mão em volta do ombro da mulher. O ser misterioso a conduziu para uma sala muito grande com estantes repletas de livros e lampiões presos à parede a iluminavam.

Três homens estavam de pé na ponta de uma mesa longa e retangular. Seus cabelos grisalhos, linhas estampadas em seus rostos e a pele enrugada diziam que eram idosos. Um deles tinha uma barba longa que tocava a barriga e vestia uma túnica vermelha de veludo com um peito – decorado com uma vara e pequenas estrelas em volta, era um símbolo bem familiar para Sarah – sobre ela, a manga comprida da túnica era de cor bege e usava também uma capa que seguia o mesmo padrão da manga. O segundo vestia o mesmo tipo de roupa, só que a cor era verde. O último dos senhores seguia o mesmo padrão com a túnica branca.

Elenwë se aproximou cautelosamente. Um dos três anciãos movimentou os lábios, pronunciando algo em Ídier que Sarah não conseguia entender, a expressão da antiga Esbael foi estranha. Ela colocou a mão sobre a boca como se recebesse uma notícia decepcionante e forte como uma bomba, Elenwë se virou e abraçou o homem que a havia acompanhado, chorando em seus braços. Parecia realmente triste. As imagens começaram a se perder e, mais uma vez, Sarah se viu em sua tenda, esparramada sobre as almofadas de couro. Esfregou os olhos vermelhos e cansados, depois verificou a mochila – como havia se acostumado a fazer – e levantou de sua “cama”. Ao colocar as roupas de frio, foi para o lado de fora caminhar um pouco. Mais adiante encontrou Urius pegando uma espada de madeira, ele a observou e disse:

- Ah, bem na hora rogesh.

Sarah ainda estava atordoada, mas acabou encontrando as palavras que queria:

- De que?

- Do seu treinamento com espada.

- Mas não iria ser apenas amanhã? – indagou ela, um tanto sonolenta.

- Já é de manhã – respondeu o rapaz sorrindo.

- Já?!Mas ainda está escuro.

- A neblina daqui é muito forte, acho que por isso está se perdendo, é só uma questão de tempo até se acostumar.

- Tem razão, ainda mais quando não se dorme bem.

- Está cansada?

- Sim. Mas não vou morrer por causa disso – disse ela calmamente ensaiando um sorriso.

- Muito bem, pegue! – atirou a espada de madeira para ela.

Os dois caminharam para a tenda de duelos. Estava vazia. Urius sentou-se no chão com as pernas cruzadas e encarou Sarah por um tempo, até que disse:

- Diga-me, você já manejou uma espada?

- Não – respondeu ela calmamente.

- Só queria confirmar, quando meu pai me contou mal pude acreditar – fez uma pausa. – Então não podemos lutar agora, primeiro você deve aprender um pouco sobre espadas – ele deu um longo suspiro enquanto procurava as palavras adequadas. - A espada, de forma diferente das outras armas, é muito mais do que um objeto que alguém acha no chão para usar em combate e depois deixa de lado em tempos de paz. Ela é tão essencial quanto à própria armadura, já que sem a arma um guerreiro não é um guerreiro. Você deve saber tudo sobre ela, desde a limpeza até como caminhar e colocá-la em uma posição apropriada durante uma conversa. Então, vamos começar?

- Se hoje só vai ser assim, estou mais do que pronta. Meu cansaço não iria deixar que eu lutasse.

Urius riu. Depois colocou a mão no queixo como se pensasse no que iriam fazer. Enfim, levantou-se e caminhou para fora. Não mais do que dez minutos depois, ele retornou, trazendo consigo uma espada de verdade em mãos. Ele explicou que quando a espada está presa à cintura, Sarah deveria repousar a mão sobre o punho enquanto caminhava, disse também que para limpá-la a jovem deveria molhar um pano com água e deslizá-lo lentamente sobre toda a lâmina para que o fio não o rasgasse. Este método deveria ser usado se por acaso houvesse sangue impregnado, caso contrário um pano seco serviria para poli-la.

Disse que enquanto estivesse parada conversando com alguém, não precisaria segurar o punho da espada e assim, teria oportunidade para relaxar as mãos. Fez alguns movimentos e obrigou Sarah a executá-los também, ensinou que ela deveria estar sempre atenta a todos a sua volta e que tudo deveria ser como um espelho para ajudá-la em suas observações como a lâmina da espada, por exemplo, olhando para ela se podia ver quem estava por trás durante uma luta e assim, cuidar de mais de uma pessoa simultaneamente.

Explicou que durante uma batalha ela deveria esvaziar sua mente de todas as preocupações para que a espada deslizasse por sua mão, mas alertou quanto a prestar atenção ao seu redor. Depois que terminou suas explicações e a fez repetir tudo para ver se tinha entendido, já havia entardecido. Urius a dispensou e avisou que amanhã pela manhã mandaria alguém acordá-la pelo menos até que esta se acostumasse com o ambiente nebuloso da montanha.

Sarah caiu sobre suas confortáveis almofadas e ficou pensativa. Passou a tarde inteira ali, totalmente isolada do mundo exterior, até adormecer. Em seu segundo dia na montanha, e décimo naquele mundo, Sarah foi despertada por um Curior vestido em trajes felpudos. Ela se dirigiu imediatamente para a tenda de duelos onde encontrou Urius na entrada segurando duas espadas de madeira.

- A partir de hoje é só prática – disse ele com a voz doce que sempre usava, acompanhada de um sorriso.

Ambos entraram. Urius posicionou-se em frente à Sarah, ele não mantinha postura nenhuma apenas aguardava pacientemente por um ataque direto da garota, sem desviar o olhar dela. Ao erguer a espada, Sarah correu em sua direção. Urius movimentou-se para o lado desviando do golpe e com um movimento rápido, atingindo as costas da jovem. Ela se recuperou da pancada e voltou-se para o Curior. O rapaz notou que ela segurava muito forte a espada, tanto que as pontas de seus dedos estavam brancas. Ele esperou que a garota se aproximasse e novamente deu-lhe um forte golpe do joelho.

Os músculos do rosto de Sarah se contraíram de dor, mas ela se recuperou e voltou a atacar – estava mais persistente do que nunca. Não importava o que ela fizesse, o quanto cansasse, não conseguia de forma alguma penetrar na defesa do rapaz. Ele estava impassível, apenas a observava. Sarah respirou fundo e tentou atacá-lo nas costelas, mas com um movimento rápido ele a bloqueou e com outros mais rápidos ainda, acertou-a em três pontos diferentes: nas costelas, no ombro e no joelho. A prática tinha durado o dia inteiro e agora já anoitecia.

Sarah mancou de volta para sua barraca e, novamente, adormeceu. Desta vez as recordações de Elenwë haviam sido substituídas pelos diversos golpes aprendidos e as lições que Urius havia lhe ensinado. Três dias se passaram e em todos os seus treinamentos, a garota ainda não havia conseguido atingir o Curior em parte alguma, ela estava ficando agitada e daí vinha sua vontade de continuar tentando. Sarah tinha hematomas por todo o corpo, principalmente nas costelas, ali era o pior lugar pois cada vez que ela respirava sentia uma forte pontada e mal conseguia se movimentar durante o treinamento. Mas uma coisa a deixava feliz, a cada luta ela se aperfeiçoava principalmente por causa das broncas que Urius dava nela quando suas mãos estavam tensas demais e quando notava que estava distraída.

A jovem já estava na montanha há cinco dias. Sarah estava começando a ficar exausta por causa dos constantes treinamentos que exigiam demais dela, sem mencionar o quão entediante era ficar naquela cidade sem nada para fazer, apenas treinar e dormir o tempo inteiro. O único lazer que ela tinha era caçar uma vez ou outra com os Curiors montados nos Worioks. Outra coisa que lhe dava saudade era Maya, desde que a deixou lá que não dava notícias e isso a deixava um tanto preocupada com o que poderia ter acontecido a animorfa.

Naquele dia, como de costume, ela caminhou até a tenda de duelos e lá começou sua luta com Urius. Um sorriso estava estampado no rosto da jovem e ela estava determinada a acertá-lo pela primeira vez. Ele esperava que ela o atacasse, mas ficou completamente parada, apenas prestando atenção enquanto olhava no fundo dos olhos dele. Sorrindo, Urius atacou, mas ela conseguiu bloquear. O rapaz tentou atingi-la no pescoço mas com um movimento rápido se abaixou e o acertou no joelho fortemente. Reagindo, ele abaixou a espada em sua direção. Plak!

Ela girou o corpo para o lado no momento em que ele a atingiu no ombro. Com outro golpe forte as espadas se chocaram. Plak! Mantiveram a posição até gotas de suor escorrerem no rosto de cada um. Afastaram-se e novamente as espadas se encontraram. Plak! Agora estava difícil para ambos atingir um ao outro, estavam praticamente do mesmo nível, a única diferença era que Urius vinha de uma raça diferente, consequentemente chegava, na maioria das vezes, a ser mais forte do que Sarah, mas ela dava conta do recado. Concentrados, foram surpreendidos quando Maya irrompeu na tenda.

- A situação não está nada boa! – disse ela.

Os dois se afastaram, procurando tomar um pouco de ar.

- O que houve? – indagou Sarah franzindo a testa.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Capítulo 5 – O início de uma jornada





Sarah notou que os músculos no rosto escamoso do dragão se contraíam. Ele apertou seus grandes olhos, como se analisasse os fatos. O animal, como sempre, caminhou até ela a passos lentos e sentou ao seu lado. Correu os olhos azuis para o teto da caverna , depois se voltou para a garota e disse:

- Isto é muito estranho... – fez uma pausa. – É como se vocês duas compartilhassem as mesmas lembranças e sentimentos. É difícil dizer se esta visão que você teve está relacionada com um passado já vivenciado ou se faz parte de um futuro próximo. De alguma forma, Elenwë se conectou a você. As chances de ela estar viva são mínimas, mas talvez seja possível sim.

- Como ela se ligou a mim?

- Talvez essa ligação tenha sido conseqüência de algum feitiço proibido.

- Entendi. Muito obrigada por tudo Kionnuhr.

O dragão esticou os lábios formando um leve sorriso enquanto fechava os olhos. Ele inclinou levemente a cabeça, e tocou-lhe o ombro com o focinho.

- Agora vá, cada minuto é precioso.

- Tudo bem, até logo.

- Até – despediu-se Kionnuhr.

Sarah fez uma reverência e foi ao encontro de Maya, que a aguardava próxima a entrada da caverna. Ao encontrarem o grupo do lado de fora, ambas explicaram a situação em que se encontravam. Disseram que teriam de se separar, pois Sarah deveria iniciar seu treinamento em breve. Maya pediu para que as levassem até o outro lado do lago Mun’raën e, um a um, os Endirvis embarcaram em suas canoas, e começaram a remar. Ao final da travessia uma forte brisa correu entre eles e Sarah notou um campo com vegetação rasteira.

A jovem agradeceu a Arian por toda a hospitalidade e aos Endirvis pela escolta até a caverna Duisternes. Maya, que passara todo o tempo segurando seu braço ferido se abaixou enquanto retirava um cantil – feito de pele de animal – que estava amarrado em sua cintura. Ela o abriu e encheu com água do lago. Depois, Sarah e ela passaram um bom tempo se despedindo dos amigos até que começaram a caminhar para longe, e desapareceram de vista.

- Para onde vamos? – indagou Sarah.

- Primeiro você precisa aprender a manejar a espada e os mais indicados para te ensinar são os Curiors.

- Curiors?Quem são eles?

- São criaturas semelhantes a humanos, só que eles têm uma cor de pele bem diferente e vivem nas montanhas Leeuw Tand que fica a uns quatro dias daqui.

Caminharam durante uns quarenta minutos e Sarah começou a sentir seu pé latejar. As pernas já não estavam mais tão fortes quanto antes e seus joelhos pinicavam. Quando chegaram ao pé de uma montanha, Maya gesticulou para que as duas dessem a volta. Agora havia um morro bem diante delas e ao longo dele, uma variedade de flores como: orquídeas e rosas, nas cores, branca e vermelha. Ao passarem pelo morro puderam ver que havia um monte de pedras, uma sobre a outra, de modo a lembrar o movimento de ondas.

A travessia por aquelas pedras era bem difícil, era íngreme e algumas vezes, quando Sarah apoiava o pé em uma delas, acabava derrubando várias pela ladeira que se formava – sorte não ter ninguém em baixo. Levou algum tempo para que ultrapassassem tal obstáculo, pois deveria ser feito com cautela. Quando finalmente chegaram ao outro lado, uma brisa suave refrescou seus rostos molhados de suor, trazendo-lhes certo alívio e calmaria. Não muito distante dali, podiam ver que pinheiros em diversos tamanhos se espalhavam por um vale onde havia duas montanhas.

- Falta pouco agora – disse Maya calmamente.

- Ainda falta?! – disse Sarah alterando a voz ofegante.

Ela não agüentava mais andar, neste momento sentiu falta de um carro ou bicicleta, mas sabia que estava longe de ter algo assim em Amagar. Mal conseguia sentir os pés, a todo instante as leves brisas traziam poeira que grudava em seu rosto suado. Estava imunda, com sede e muito cansada. Perguntava-se se Maya realmente dizia a verdade ou se ainda faltava mais um quilometro a percorrer. De qualquer forma, não adiantava contrariar, deveria se calar e seguir em frente.

O vale era bem mais fácil de atravessar pois não havia obstáculos, apenas grama, então logo chegaram às montanhas. Maya se aproximou de Sarah e retirou sua pele de tigre, entregando-a para a garota.

- Melhor colocar isso, vai precisar.

A animorfa se voltou para a montanha, esfregou as mãos em suas vestes e colocou o pé direito em uma das várias brechas que formavam a montanha, depois a mão esquerda um pouco acima da cabeça. Sarah arregalou os olhos e apertou a capa contra o peito enquanto corria os olhos pela montanha até o topo, que era praticamente impossível de se ver nitidamente devido à grande quantidade de neblina que o envolvia.

- Tá brincando né? – voltou-se novamente para Maya que já havia começado a escalar. – A gente tem que subir isso tudo?!

- Olhe pelo lado bom, suas pernas vão descansar para dar vez as mãos.

Sarah deixou o queixo cair enquanto observava o jeito sorridente e despreocupado da mulher, mesmo depois de todo o percurso que haviam feito ela não parecia cansada. A jovem amarrou a pele nas costas e puxou um capuz que pendia na parte de traz. Em seguida, se aproximou, enxugou as mãos e apoiou o pé na mesma brecha por onde Maya tinha passado. À medida que ia escalando, mesmo não olhando para baixo, Sarah tentava controlar o nervosismo que embrulhava seu estômago e deixava suas mãos ainda mais molhadas do que antes.

Deu uma parada e fechou os olhos enquanto apertava ainda mais a brecha em que estava agarrada. Respirou fundo. Olhou para cima e notou que Maya estava bem distante. Perguntava-se como ela conseguia subir tão rápido em um local tão íngreme. Era terrivelmente alto e qualquer passo em falso resultaria num acidente em que Sarah procurava nem pensar nas conseqüências.

Uma luz alaranjada, e mais quente do que qualquer outra durante o dia, envolvia o corpo de Maya. A animorfa colocou uma das mãos em uma superfície plana cheia de terra. Procurou deixar os pés na mesma altura e segurou firme uma pedra que se encontrava presa na superfície – que havia encontrado. Colocou um dos pés no ponto mais alto que encontrou e empurrou ao mesmo tempo em que puxava a pedra. Agarrou o chão com a outra mão e fez força para colocar o pé restante no topo. O suor escorreu pelo couro cabeludo e pingou no chão. Ela se virou, de modo a ficar frente a frente com a luz do sol. Depois, deitou-se e abaixou as mãos para que Sarah pudesse segurar.

- Venha, eu te ajudo.

Diferentemente de quando começaram a escalar, Maya agora parecia realmente cansada. Seu rosto brilhava de tanto suor e ela mordia os lábios inferiores. Sarah se aproximou um pouco mais e estendeu uma das mãos para agarrar a da animorfa. Estavam um tanto escorregadias, porém geladas. Quando conseguiu agarrar as duas mãos, subiu um dos pés de modo que estivesse na mesma altura do outro e usou como apoio para facilitar o trabalho de Maya.

Quando viu terra firme, Sarah deitou com a barriga para baixo, esticando as pernas e os braços dormentes. O coração inquieto agora começava a se acalmar e ela passou alguns instantes com os olhos fechados, sentindo o forte vento que cortava a montanha. Ouviu um som, como se algo se arrastasse pelo chão. Ao abrir os olhos sentiu uma ardência devido à luz do sol, mas notou que Maya se levantava.

- Tenho que ir caçar. Precisamos nos alimentar agora e guardar um pouco de comida para nossa viajem. Afinal, caminharemos bastante e não podemos sentir fraqueza – pegou o cantil e jogou ao lado de Sarah. – Beba um pouco, não muito. Ainda vamos precisar.

Maya saltou da montanha, e logo depois Sarah ouviu o piar de um pássaro. Uma águia sobrevoou o ambiente depois desceu. Ao chegar ao pé da montanha a animorfa se transformou em um leão da montanha. O belo animal ergueu a cabeça e cheirou várias vezes o ar. Olhou para além dos pinheiros com seus grandes e penetrantes olhos amarelos. O felino se encolheu e caminhou lentamente em direção a um cervo filhote que estava próximo a mãe.

O animal comia tranqüilamente a grama. Maya chegou bem perto. A mãe do pequeno cervo ergueu as orelhas e correu os olhos negros pelos pinheiros, sempre atenta. Maya chacoalhou calmamente seus ombros e quando o animal abaixou a cabeça, ela deu um salto veloz em direção a eles. Instintivamente, a cerva deu um leve toque com o focinho em seu filhote e correu para longe com o pequenino bem atrás. A animorfa estava exausta, mas tinha de conseguir alimento antes do anoitecer.

Suas grandes patas se moveram ainda mais rápido e ela se lançou sobre a cerva. Dando-lhe uma mordida brutal no pescoço. O animal morreu imediatamente. Sem a presença da mãe o filhote ficou um pouco confuso, sem saber que direção tomar, tornando-se uma presa ainda mais fácil. Maya, ainda em sua forma de felino, abocanhou o corpo do cervo menor e o levou até o pé da montanha.

Ela deu um salto e cravou suas garras nas brechas. O porte do animal em que estava transformada e as garras auxiliavam bastante durante a escalada e não demorou mais do que uns vinte minutos para que chegasse onde Sarah estava. A garota estava encostada em uma parede com as pernas esticadas e os olhos fechados, parecia realmente muito cansada. A animorfa se aproximou e colocou o cervo no chão com uma pancada abafada. Sarah abriu os olhos de forma rápida e ao notar o pequeno animal ensangüentado estirado no chão, arregalou-os.

- Eu já volto – disse Maya, saltando novamente da montanha.

Sarah nunca tinha visto um animal morto antes. Aliás, nunca tinha visto qualquer outro ser morto. Era triste ver uma criaturinha daquele tamanho com tanto sangue escorrendo por seu dorso. Apesar de ser filhote, seus olhos negros eram bem grandes e tinham um brilho incomum e triste. A jovem sentiu um caroço se formar em sua garganta. Em que mundo maluco ela tinha caído. Um lugar onde as pessoas caçavam pra sobreviver, um mundo onde ainda havia escravidão, e bruxos, e humanos conviviam com dragões. Era difícil para ela se acostumar com aquilo.

Procurou desviar seu olhar do cadáver do cervo e observou o pôr-do-sol no horizonte. Aos poucos, o suor que antes envolvia seu corpo, desaparecia. Quanto mais o anoitecer se aproximava mais frio era o ambiente e depois de ter caminhado tanto, Sarah sentia suas pálpebras ficarem cada vez mais pesadas e começavam a se fechar involuntariamente. Durante o breve momento que descansou os olhos, ouviu um baque abafado. Maya havia lançado outro cervo, só que este era maior do que o que trouxera antes.

Quando a animorfa se aproximou do cervo menor, finalmente voltou para sua forma humana. Sarah não pôde evitar que seu rosto se contraísse ao ver os lábios carnudos da mulher cheios de sangue. Maya apanhou o cantil que estava próximo da garota e colocou um pouco de água na boca, chacoalhou e cuspiu para longe. Derramou um pouco do líquido na mão e passou sobre os lábios avermelhados pra que eliminasse os vestígios de sangue. Tampou o cantil e o amarrou na cintura.

- Estou exausta – disse ela sorrindo enquanto sentava ao lado de Sarah.

- Num é pra menos, foi um dia muito cansativo.

- Ainda não acabou – Sarah lançou-lhe um olhar fulminante. – Calma, não é o que você está pensando. Sabes fazer fogo?

- Sei, por quê?

- Pode fazer, por favor?

- Posso, mas preciso de gravetos.

Maya olhou em volta.

- Aqueles servem? – indagou, apontando para uma pequena quantidade de gravetos espalhados.

- Servem.

Sarah ficou de pé e caminhou em direção aos pedaços de madeira, pegou uma boa quantidade deles e voltou a se sentar.

- Nenhum deles é grosso o suficiente para fazer furos.

- Fazer furos?!Para quê? – indagou Maya, espantada.

- Ué, para fazer o fogo.

- Nós usamos pedras – abriu a bolsa de couro que tinha na cintura e retirou duas pedras de tamanho médio. – Pegue – disse ela as entregando para Sarah. – Quando se vai viajar para uma montanha onde é difícil encontrar pedras como estas, tem que vir prevenida.

- Como vou fazer fogo com isto?

- Pensei que tivesse dito que sabia fazer.

- Eu sei fazer fogo, mas não desse jeito – respondeu a jovem. – Meu método é bem mais prático.

- Junte os gravetos e bata uma pedra contra a outra sobre eles. As faíscas vão fazer o resto.

Maya observou o olhar engraçado que Sarah lançava para as pedras, enquanto caminhava até o cervo menor. Ela desembainhou sua adaga e pegou um punhado do couro do animal, depois perfurou um pedaço e puxou com força, pra que pudesse arrancar toda a pele que segurava. Lançou o couro que havia arrancado para longe e pegou mais um pouco. A carne vermelha e um tanto engordurada do cervo estava à mostra. A animorfa notou que Sarah a observava de soslaio, com os olhos apertados.

- Não pense que gosto de fazer isso – disse rapidamente sem parar o que estava fazendo. – Mas é uma questão de sobrevivência, para comer carne temos que matar animais vivos. Geralmente preferia comprar em algum açougueiro, mas estamos muito distantes de qualquer outra coisa que não sejam pinheiros e montanhas.

- Só fico me perguntando como você consegue fazer algo assim com tanta calma – comentou a jovem enquanto batia uma pedra contra a outra na esperança de ver ao menos uma faísca.

- Costume – respondeu Maya lançando outro pedaço de pele para longe. – Para chegar à floresta Flóriur da terra dos bruxos eu precisava caminhar bastante. Claro que na forma de um animal é bem mais rápido, mas não o suficiente para chegar em um dia, então eu tinha que caçar... – fez uma pausa. – Um dia você também vai se acostumar.

- Nunca – respondeu Sarah rapidamente. – Não quero ter que fazer algo tão nojento.

Maya deu uma gargalhada baixa.

- Mas algum dia vai ter que fazer se quiser sobreviver. Assim como também terá que matar.

Sarah sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha só de pensar que algum dia teria de matar alguém. Com o olhar um pouco distante, ela apertou as pedras que segurava de modo que as pontas dos dedos ficaram brancas. Fechou os olhos e balançou a cabeça como se procurasse despertar. Depois começou a batê-las, uma contra a outra, produzindo leves faíscas que saltavam sobre o amontoado de galhos. Havia uma pequena folha em um dos galhos e ao queimar, a chama se prolongou até os outros gravetos e a fogueira se formou.

Feliz, a jovem se voltou para Maya com um leve sorriso estampado no rosto. A pele morena de Sarah ficou branca depois do que viu: a animorfa abrira um buraco na barriga do cervo e à medida que retirava os órgãos do animal, os enterrava. Sarah levou uma das mãos até a boca e se voltou para o lado oposto.

Maya cortou cada pedaço de gordura do cervo, depois fatiou a carne em diversos pedaços grandes. Enxugou as mãos ensangüentadas na roupa, depois retirou a bolsa da cintura e a abriu. Pegou um trapo que guardava nela e o esticou no chão, apanhando a carne e a envolvendo no pedaço de pano. Em seguida, guardou-a na bolsa e empurrou para longe. A animorfa puxou o cadáver do cervo maior e começou a fazer o mesmo que fizera com o anterior.

- Melhor você descansar um pouco, vai demorar pra que a comida fique pronta.

Sarah criou coragem para olhar na direção da mulher.

- Não sei se ainda quero comer – disse ela calmamente.

- Ora vamos, deixe de bobagens – arrancou um grande pedaço de pele e jogou para longe. – Quando chegarmos ao topo da montanha, vai se arrepender de não ter se alimentado.

A garota engatinhou até a parede mais próxima e se encostou. Retirou a pele de tigre que usava nas costas e colocou sobre o corpo, estava cada vez mais frio no alto da montanha e ela já começava a notar que as unhas ficavam roxas. Ao olhar para cima, percebeu um rápido feixe de luz correr pelo céu negro da noite. “Uma estrela cadente!” – pensou. Sarah fechou os olhos desejando que pudesse algum dia, voltar para casa e tornar a ver sua família e amigas.

Abriu-os. “Que bobagem a minha, fazer um pedido para uma pedra que se desintegra na atmosfera do planeta”. Devo estar mesmo desesperada.” – pensava ela enquanto abria um leve sorriso. Suspirou, observando a fumaça branca que saía de seus lábios. “Puxa, está mesmo frio aqui”.

Quando finalmente terminou de cortar a carne em pequenos cubos, Maya pegou um dos gravetos que queimavam na fogueira e, com pequenas batidas no chão, apagou a chama. Depois espetou a carne nele e colocou sobre o fogo. Seus olhos azuis brilhavam ao observar, constantemente, o crepitar das chamas. Ela estendeu o braço ferido. Apesar de ter tratado do machucado com ervas medicinais, ainda assim ardia muito e a escalada só havia piorado a dor.

- Sarah – disse ela estendendo o graveto com a carne assada. – Coma.

A jovem observou a comida. Mesmo depois de ter visto como Maya tratava da carne, a maneira com a qual a mulher arrancava a pele do pequeno animal para que pudesse servir de alimento para elas. Ainda assim não perdera o apetite. Estava exausta e seu estômago roncava como nunca. Deu uma mordida na carne mal passada, estava bem quente pois estivera em contato direto com as chamas, mas queimar a língua não era nada perto da fome que sentia.

Mastigando de forma selvagem e engolindo o mais rápido que podia, Sarah notou que a animorfa estava de frente para a fogueira com as mãos estendidas de modo que as aquecesse. Sua expressão era impassível e despreocupada. Ela observava as chamas envolvendo a carne que colocara na fogueira. Os olhos azuis, que faziam força para se manterem abertos, brilhavam mais do que nunca. De certa forma parecia cansada. O olhar de Maya se voltou para Sarah.

- O que foi?

- Nada – disse a jovem engolindo o pedaço de carne. – Só estava me perguntando como você vai se aquecer. Já que me deu sua capa.

- Não se preocupe com isso – respondeu ela ensaiando um sorriso. – Posso virar um animal que possa se aquecer lembra?

- Como uma ovelha?

- Engraçadinha – disse ela dando uma risadinha sarcástica. – Por que não tenta dormir?

Ao terminar de mastigar o último pedaço de carne, Sarah deitou de forma lenta e puxou a capa de tigre até o pescoço. Seus olhos ardiam, os pés ainda estavam dormentes e o frio aumentava ainda mais sua exaustão. Bastou fechar os olhos e a jovem caiu em um sono profundo. Sem pensamento algum, apenas uma escura imensidão e uma sensação relaxante incomparável.

- Vraldres (não demorou) – murmurou Maya.

Ela retirou a carne do fogo e observou o céu enquanto dava uma mordida. Nuvens acinzentadas que revestiam a abóbada celeste ausente de estrelas, davam-lhe um ar sombrio. A lua cheia estava completamente visível. Maya engoliu a comida de forma vagarosa enquanto fechava os olhos e sentia o vento frio beijar-lhe o rosto. Era uma sensação muito boa para quem passara o dia inteiro escalando uma montanha e sendo castigada pela fadiga e pela sujeira que estava impregnada em todo o seu corpo. Após alguns minutos, quando finalmente conseguiu terminar de comer, ela se deitou e adormeceu.

Quando a aurora tocou a montanha, a animorfa levantou lentamente enquanto erguia os braços, emitindo um som de satisfação. Não muito longe dela, Sarah dormia tão profundamente que parecia estar morta. Maya balançou a cabeça e pôs-se de pé. Colocou a mão sobre o ombro da jovem, agitando-o para que ela acordasse, mas não teve resultado. Pegou o cantil preso à cintura, abriu-o e jogou um pouco da água sobre o rosto de Sarah que deu um salto.

- Hora de acordar – disse a animorfa sorrindo.

- Que modo de acordar alguém – disse Sarah enxugando o rosto com as costas do braço. – O sol ainda está nascendo.

- É a hora perfeita, vamos, levante!

Naquele momento, a jovem sentiu uma vontade tremenda de saltar sobre o pescoço de Maya. Como se não bastasse terem passado o dia inteiro caminhando e ainda por cima dormirem tarde. Acordar quando o sol ainda nascia aumentava ainda mais sua exaustão. Sarah mal conseguia abrir os olhos, mas conseguiu ficar de pé e vestir a capa de tigre, esfregando o peito na esperança de se manter aquecida. Ela deu leves tapas nas bochechas enquanto arregalava os olhos, tentando desembaçar sua vista cansada.

- O que está esperando?! – a voz de Maya ecoou.

A animorfa estava já estava no alto e a forte neblina que envolvia o pico da montanha, começava a esfriar seu corpo. Sarah levou um susto, perguntava à si mesma como alguém poderia ter tanta disposição. Caminhou até a brecha da montanha de forma vagarosa e começou a escalar. Maya estava parada, apenas aguardando que a jovem a alcançasse, o que não demorou mais do que alguns minutos.

Sarah sentia suas mãos começando a suar e ficou com uma vontade imensa de olhar para baixo, mas o medo do que poderia acontecer a segurou. À medida que escalava, a jovem sentia que a temperatura despencar assustadoramente. Estava terrivelmente frio. As juntas dos seus dedos começavam a pinicar era como se pequenas agulhas furassem sua pele. A impressão que ela tinha era que, aos poucos, perdia o movimento dos dedos. Estava sem força para se segurar.

A carne, sob suas unhas, estava roxa. Já se encontravam a mais ou menos seis metros de altitude se contados do local onde haviam parado pela última vez. Ela sentia como se suas energias estivessem sendo drenadas por causa das pontadas espalhadas por seu corpo. Pressionou o corpo contra a parede da montanha, segurando com toda a força que ainda lhe restava, seus lábios roxos tremiam e os olhos reviravam involuntariamente.

- Sarah? – chamou a animorfa ao notar o jeito estranho da companheira.

O corpo inteiro pinicava e a jovem sentia como se suas energias estivessem sendo sugadas. O ar gelado que invadia seus pulmões tornava cada vez mais incômoda a tentativa de respirar. Não agüentava mais. Aos poucos, suas mãos começaram a soltar a parede e seus olhos se fecharam.

- Não faça isso Sarah! – berrou.

Em uma fração de segundos, Maya saltou e agarrou o braço da jovem ao mesmo tempo em que retirava sua adaga, enfiando-a em uma brecha na montanha. As duas agora estavam penduradas e qualquer movimento em falso resultaria em uma morte terrível. Sarah teve uma vertigem ao abrir os olhos e não conseguia se mover, nem se quisesse. A animorfa olhou ao seu redor ignorando o incômodo, que uma gota de suor em seu rosto, trazia.

- Consegue se segurar? – indagou.

- Posso tentar – ela respondeu.

- Muito bem, vou balançá-la até ali e você vai tentar se segurar. Pronta?

- Quando quiser.

Maya apertou a adaga e começou a balançar o corpo de Sarah. Ao soltar, com um rápido movimento, a jovem se agarrou à parede da montanha. A tenção tinha sido tão grande que seu corpo agora estava mais aquecido, pelos breves segundos que correram no momento em que esteve no ar, achou que iria morrer.

- Não importa o quanto o frio tente te derrubar, não se deixe vencer ou estará morta – disse a animorfa em um tom de voz grave.

O dia demorava mais a passar, os minutos pareciam horas até finalmente chegaram ao topo da montanha. O frio lá era ainda mais insuportável. Grossas camadas de neve formavam um tapete branco que se estendia por toda parte. Nevava muito e o ambiente era úmido por causa da neblina que envolvia o pico da montanha. Maya Entregou sua bolsa à Sarah e se transformou em uma raposa do ártico, a cauda era felpuda e seu pêlo tão branco quanto a neve, deveria ter entre cinqüenta e sessenta centímetros.

- Por aqui – disse ela começando a caminhar.

Após alguns metros, o animal estava completamente camuflado. A única coisa que Sarah identificou foram os olhos azuis que se voltaram para ela. A jovem seguiu o quadrúpede que se movimentava graciosamente sem nem mesmo afundar naquela neve tão densa. Ela apertou as abas da pele de tigre contra o peito, procurando se aquecer. O vento urrava e sua respiração estava bem mais acelerada do que durante a escalada, era como se tudo o que seu corpo fazia fosse uma tentativa de se manter aquecido. A raposa do ártico ergueu o focinho, movendo-o de um lado para o outro.

- Vamos descansar aqui.

- Minhas três palavras preferidas – disse Sarah. – Não há nada aqui que possa fazer uma fogueira, como vou me aquecer?

- Não se preocupe.

A animorfa se transformou em um tigre da neve e se aproximou da jovem.

- Sente-se – Sarah obedeceu.

Maya andou em círculos, deitando-se atrás da garota.

- Eu a manterei aquecida. É só deitar sobre mim.

À medida que o tempo passava o ambiente ficava cada vez mais suportável. O pêlo da animorfa era quente e de certa forma, logo conseguiram dormir. Várias vezes durante a madrugada, o sono de Sarah era interrompido pelo som aterrorizante que vento produzia. Quando despertou pela quarta vez, decidiu se levantar. Seus lábios estavam roxos e tremiam de forma rápida. Ela estendeu a mão e balançou o corpo do tigre das neves.

- Agora é a minha vez de acordar você – disse Sarah, sorrindo. – Vamos Maya já descansamos o suficiente.

O animal deixou um ronronar, um tanto alto, escapar, e aos poucos voltou para a forma de raposa do ártico. Maya cambaleou um pouco até finalmente estar acordada. Ela farejou o ar e começou a caminhar, com Sarah em seus calcanhares. Após algumas horas a jovem começava a sentir certa impaciência, revirando os olhos enquanto observava as pegadas profundas que deixava na neve.

- É ali – disse Maya.

Sarah fez uma pausa, apertando os olhos na tentativa de ver alguma coisa. A neblina se afastava, dando um pequeno espaço, onde uma ponte de madeira podia ser avistada. Ela abriu um sorriso e começou a correr, de certa forma era bastante difícil, suas coxas começavam a latejar, mas a vontade de encontrar cama e comida quentinha era muito maior. Correr na neve era muito mais difícil do que correr na areia da praia, definitivamente.

- Espere Sarah! – berrou a animorfa enquanto tentava alcançar a garota.

Ao chegar à ponte, a jovem ficou mais cautelosa, colocando um pé na frente do outro de forma vagarosa. Era uma daquelas pontes frágeis e bambas que um passo em falso resultaria em morte na certa. A jovem pôde ver que a entrada da cidade se parecia com um forte. Seus muros eram feitos de uma madeira bem resistente e no final delas haviam pontas bastante afiadas, que lembravam estacas. No topo dos portões – feitos do mesmo material do muro – havia duas torres de vigilância onde guardas vestindo um punhado de roupas felpudas, seguravam enormes lanças.

Sarah estava boquiaberta com o tamanho daquela construção, no meio do nada. Não demorou muito para que Maya a alcançasse, ela se aproximou da entrada e um homem coberto da cabeça aos pés atravessou os portões, indo de encontro as duas. Ele caminhava cautelosamente com a ponta da lança virada para elas.

- Se quiser fazer com que os Curiors gostem de você, seja uma boa aprendiza. – sussurrou Maya.

- Alto!Quem vem lá? – indagou o homem.

A animorfa voltou a as forma humana com um sorriso estampado no rosto.

- Pelos deuses! – disse ele abaixando a lança. – O que quer aqui Maya? – indagou rispidamente.

- Também estou feliz em ver você Rhotur – ela respondeu enquanto voltava à forma de raposa do ártico. – Viemos aqui porque Sarah precisa treinar...

- Não treinamos qualquer um e você sabe disso!

- Mas ela não é qualquer uma. É a nova Esbael.

Por causa das roupas, Sarah não pôde identificar a expressão no rosto do homem, mas o silêncio indicava enleio.

- Como saberei se está falando a verdade? – disse ele calmamente.

Sarah afastou a pele de tigre que cobria seu pulso e caminhou em direção a ele. Rhotur olhou para os homens na torre de vigilância e assentiu para que abrissem os portões, ele olhou para as duas e enquanto estendia a mão em direção à cidade disse:

- Bem vindas à Teralar.