terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Capítulo 5 – O início de uma jornada





Sarah notou que os músculos no rosto escamoso do dragão se contraíam. Ele apertou seus grandes olhos, como se analisasse os fatos. O animal, como sempre, caminhou até ela a passos lentos e sentou ao seu lado. Correu os olhos azuis para o teto da caverna , depois se voltou para a garota e disse:

- Isto é muito estranho... – fez uma pausa. – É como se vocês duas compartilhassem as mesmas lembranças e sentimentos. É difícil dizer se esta visão que você teve está relacionada com um passado já vivenciado ou se faz parte de um futuro próximo. De alguma forma, Elenwë se conectou a você. As chances de ela estar viva são mínimas, mas talvez seja possível sim.

- Como ela se ligou a mim?

- Talvez essa ligação tenha sido conseqüência de algum feitiço proibido.

- Entendi. Muito obrigada por tudo Kionnuhr.

O dragão esticou os lábios formando um leve sorriso enquanto fechava os olhos. Ele inclinou levemente a cabeça, e tocou-lhe o ombro com o focinho.

- Agora vá, cada minuto é precioso.

- Tudo bem, até logo.

- Até – despediu-se Kionnuhr.

Sarah fez uma reverência e foi ao encontro de Maya, que a aguardava próxima a entrada da caverna. Ao encontrarem o grupo do lado de fora, ambas explicaram a situação em que se encontravam. Disseram que teriam de se separar, pois Sarah deveria iniciar seu treinamento em breve. Maya pediu para que as levassem até o outro lado do lago Mun’raën e, um a um, os Endirvis embarcaram em suas canoas, e começaram a remar. Ao final da travessia uma forte brisa correu entre eles e Sarah notou um campo com vegetação rasteira.

A jovem agradeceu a Arian por toda a hospitalidade e aos Endirvis pela escolta até a caverna Duisternes. Maya, que passara todo o tempo segurando seu braço ferido se abaixou enquanto retirava um cantil – feito de pele de animal – que estava amarrado em sua cintura. Ela o abriu e encheu com água do lago. Depois, Sarah e ela passaram um bom tempo se despedindo dos amigos até que começaram a caminhar para longe, e desapareceram de vista.

- Para onde vamos? – indagou Sarah.

- Primeiro você precisa aprender a manejar a espada e os mais indicados para te ensinar são os Curiors.

- Curiors?Quem são eles?

- São criaturas semelhantes a humanos, só que eles têm uma cor de pele bem diferente e vivem nas montanhas Leeuw Tand que fica a uns quatro dias daqui.

Caminharam durante uns quarenta minutos e Sarah começou a sentir seu pé latejar. As pernas já não estavam mais tão fortes quanto antes e seus joelhos pinicavam. Quando chegaram ao pé de uma montanha, Maya gesticulou para que as duas dessem a volta. Agora havia um morro bem diante delas e ao longo dele, uma variedade de flores como: orquídeas e rosas, nas cores, branca e vermelha. Ao passarem pelo morro puderam ver que havia um monte de pedras, uma sobre a outra, de modo a lembrar o movimento de ondas.

A travessia por aquelas pedras era bem difícil, era íngreme e algumas vezes, quando Sarah apoiava o pé em uma delas, acabava derrubando várias pela ladeira que se formava – sorte não ter ninguém em baixo. Levou algum tempo para que ultrapassassem tal obstáculo, pois deveria ser feito com cautela. Quando finalmente chegaram ao outro lado, uma brisa suave refrescou seus rostos molhados de suor, trazendo-lhes certo alívio e calmaria. Não muito distante dali, podiam ver que pinheiros em diversos tamanhos se espalhavam por um vale onde havia duas montanhas.

- Falta pouco agora – disse Maya calmamente.

- Ainda falta?! – disse Sarah alterando a voz ofegante.

Ela não agüentava mais andar, neste momento sentiu falta de um carro ou bicicleta, mas sabia que estava longe de ter algo assim em Amagar. Mal conseguia sentir os pés, a todo instante as leves brisas traziam poeira que grudava em seu rosto suado. Estava imunda, com sede e muito cansada. Perguntava-se se Maya realmente dizia a verdade ou se ainda faltava mais um quilometro a percorrer. De qualquer forma, não adiantava contrariar, deveria se calar e seguir em frente.

O vale era bem mais fácil de atravessar pois não havia obstáculos, apenas grama, então logo chegaram às montanhas. Maya se aproximou de Sarah e retirou sua pele de tigre, entregando-a para a garota.

- Melhor colocar isso, vai precisar.

A animorfa se voltou para a montanha, esfregou as mãos em suas vestes e colocou o pé direito em uma das várias brechas que formavam a montanha, depois a mão esquerda um pouco acima da cabeça. Sarah arregalou os olhos e apertou a capa contra o peito enquanto corria os olhos pela montanha até o topo, que era praticamente impossível de se ver nitidamente devido à grande quantidade de neblina que o envolvia.

- Tá brincando né? – voltou-se novamente para Maya que já havia começado a escalar. – A gente tem que subir isso tudo?!

- Olhe pelo lado bom, suas pernas vão descansar para dar vez as mãos.

Sarah deixou o queixo cair enquanto observava o jeito sorridente e despreocupado da mulher, mesmo depois de todo o percurso que haviam feito ela não parecia cansada. A jovem amarrou a pele nas costas e puxou um capuz que pendia na parte de traz. Em seguida, se aproximou, enxugou as mãos e apoiou o pé na mesma brecha por onde Maya tinha passado. À medida que ia escalando, mesmo não olhando para baixo, Sarah tentava controlar o nervosismo que embrulhava seu estômago e deixava suas mãos ainda mais molhadas do que antes.

Deu uma parada e fechou os olhos enquanto apertava ainda mais a brecha em que estava agarrada. Respirou fundo. Olhou para cima e notou que Maya estava bem distante. Perguntava-se como ela conseguia subir tão rápido em um local tão íngreme. Era terrivelmente alto e qualquer passo em falso resultaria num acidente em que Sarah procurava nem pensar nas conseqüências.

Uma luz alaranjada, e mais quente do que qualquer outra durante o dia, envolvia o corpo de Maya. A animorfa colocou uma das mãos em uma superfície plana cheia de terra. Procurou deixar os pés na mesma altura e segurou firme uma pedra que se encontrava presa na superfície – que havia encontrado. Colocou um dos pés no ponto mais alto que encontrou e empurrou ao mesmo tempo em que puxava a pedra. Agarrou o chão com a outra mão e fez força para colocar o pé restante no topo. O suor escorreu pelo couro cabeludo e pingou no chão. Ela se virou, de modo a ficar frente a frente com a luz do sol. Depois, deitou-se e abaixou as mãos para que Sarah pudesse segurar.

- Venha, eu te ajudo.

Diferentemente de quando começaram a escalar, Maya agora parecia realmente cansada. Seu rosto brilhava de tanto suor e ela mordia os lábios inferiores. Sarah se aproximou um pouco mais e estendeu uma das mãos para agarrar a da animorfa. Estavam um tanto escorregadias, porém geladas. Quando conseguiu agarrar as duas mãos, subiu um dos pés de modo que estivesse na mesma altura do outro e usou como apoio para facilitar o trabalho de Maya.

Quando viu terra firme, Sarah deitou com a barriga para baixo, esticando as pernas e os braços dormentes. O coração inquieto agora começava a se acalmar e ela passou alguns instantes com os olhos fechados, sentindo o forte vento que cortava a montanha. Ouviu um som, como se algo se arrastasse pelo chão. Ao abrir os olhos sentiu uma ardência devido à luz do sol, mas notou que Maya se levantava.

- Tenho que ir caçar. Precisamos nos alimentar agora e guardar um pouco de comida para nossa viajem. Afinal, caminharemos bastante e não podemos sentir fraqueza – pegou o cantil e jogou ao lado de Sarah. – Beba um pouco, não muito. Ainda vamos precisar.

Maya saltou da montanha, e logo depois Sarah ouviu o piar de um pássaro. Uma águia sobrevoou o ambiente depois desceu. Ao chegar ao pé da montanha a animorfa se transformou em um leão da montanha. O belo animal ergueu a cabeça e cheirou várias vezes o ar. Olhou para além dos pinheiros com seus grandes e penetrantes olhos amarelos. O felino se encolheu e caminhou lentamente em direção a um cervo filhote que estava próximo a mãe.

O animal comia tranqüilamente a grama. Maya chegou bem perto. A mãe do pequeno cervo ergueu as orelhas e correu os olhos negros pelos pinheiros, sempre atenta. Maya chacoalhou calmamente seus ombros e quando o animal abaixou a cabeça, ela deu um salto veloz em direção a eles. Instintivamente, a cerva deu um leve toque com o focinho em seu filhote e correu para longe com o pequenino bem atrás. A animorfa estava exausta, mas tinha de conseguir alimento antes do anoitecer.

Suas grandes patas se moveram ainda mais rápido e ela se lançou sobre a cerva. Dando-lhe uma mordida brutal no pescoço. O animal morreu imediatamente. Sem a presença da mãe o filhote ficou um pouco confuso, sem saber que direção tomar, tornando-se uma presa ainda mais fácil. Maya, ainda em sua forma de felino, abocanhou o corpo do cervo menor e o levou até o pé da montanha.

Ela deu um salto e cravou suas garras nas brechas. O porte do animal em que estava transformada e as garras auxiliavam bastante durante a escalada e não demorou mais do que uns vinte minutos para que chegasse onde Sarah estava. A garota estava encostada em uma parede com as pernas esticadas e os olhos fechados, parecia realmente muito cansada. A animorfa se aproximou e colocou o cervo no chão com uma pancada abafada. Sarah abriu os olhos de forma rápida e ao notar o pequeno animal ensangüentado estirado no chão, arregalou-os.

- Eu já volto – disse Maya, saltando novamente da montanha.

Sarah nunca tinha visto um animal morto antes. Aliás, nunca tinha visto qualquer outro ser morto. Era triste ver uma criaturinha daquele tamanho com tanto sangue escorrendo por seu dorso. Apesar de ser filhote, seus olhos negros eram bem grandes e tinham um brilho incomum e triste. A jovem sentiu um caroço se formar em sua garganta. Em que mundo maluco ela tinha caído. Um lugar onde as pessoas caçavam pra sobreviver, um mundo onde ainda havia escravidão, e bruxos, e humanos conviviam com dragões. Era difícil para ela se acostumar com aquilo.

Procurou desviar seu olhar do cadáver do cervo e observou o pôr-do-sol no horizonte. Aos poucos, o suor que antes envolvia seu corpo, desaparecia. Quanto mais o anoitecer se aproximava mais frio era o ambiente e depois de ter caminhado tanto, Sarah sentia suas pálpebras ficarem cada vez mais pesadas e começavam a se fechar involuntariamente. Durante o breve momento que descansou os olhos, ouviu um baque abafado. Maya havia lançado outro cervo, só que este era maior do que o que trouxera antes.

Quando a animorfa se aproximou do cervo menor, finalmente voltou para sua forma humana. Sarah não pôde evitar que seu rosto se contraísse ao ver os lábios carnudos da mulher cheios de sangue. Maya apanhou o cantil que estava próximo da garota e colocou um pouco de água na boca, chacoalhou e cuspiu para longe. Derramou um pouco do líquido na mão e passou sobre os lábios avermelhados pra que eliminasse os vestígios de sangue. Tampou o cantil e o amarrou na cintura.

- Estou exausta – disse ela sorrindo enquanto sentava ao lado de Sarah.

- Num é pra menos, foi um dia muito cansativo.

- Ainda não acabou – Sarah lançou-lhe um olhar fulminante. – Calma, não é o que você está pensando. Sabes fazer fogo?

- Sei, por quê?

- Pode fazer, por favor?

- Posso, mas preciso de gravetos.

Maya olhou em volta.

- Aqueles servem? – indagou, apontando para uma pequena quantidade de gravetos espalhados.

- Servem.

Sarah ficou de pé e caminhou em direção aos pedaços de madeira, pegou uma boa quantidade deles e voltou a se sentar.

- Nenhum deles é grosso o suficiente para fazer furos.

- Fazer furos?!Para quê? – indagou Maya, espantada.

- Ué, para fazer o fogo.

- Nós usamos pedras – abriu a bolsa de couro que tinha na cintura e retirou duas pedras de tamanho médio. – Pegue – disse ela as entregando para Sarah. – Quando se vai viajar para uma montanha onde é difícil encontrar pedras como estas, tem que vir prevenida.

- Como vou fazer fogo com isto?

- Pensei que tivesse dito que sabia fazer.

- Eu sei fazer fogo, mas não desse jeito – respondeu a jovem. – Meu método é bem mais prático.

- Junte os gravetos e bata uma pedra contra a outra sobre eles. As faíscas vão fazer o resto.

Maya observou o olhar engraçado que Sarah lançava para as pedras, enquanto caminhava até o cervo menor. Ela desembainhou sua adaga e pegou um punhado do couro do animal, depois perfurou um pedaço e puxou com força, pra que pudesse arrancar toda a pele que segurava. Lançou o couro que havia arrancado para longe e pegou mais um pouco. A carne vermelha e um tanto engordurada do cervo estava à mostra. A animorfa notou que Sarah a observava de soslaio, com os olhos apertados.

- Não pense que gosto de fazer isso – disse rapidamente sem parar o que estava fazendo. – Mas é uma questão de sobrevivência, para comer carne temos que matar animais vivos. Geralmente preferia comprar em algum açougueiro, mas estamos muito distantes de qualquer outra coisa que não sejam pinheiros e montanhas.

- Só fico me perguntando como você consegue fazer algo assim com tanta calma – comentou a jovem enquanto batia uma pedra contra a outra na esperança de ver ao menos uma faísca.

- Costume – respondeu Maya lançando outro pedaço de pele para longe. – Para chegar à floresta Flóriur da terra dos bruxos eu precisava caminhar bastante. Claro que na forma de um animal é bem mais rápido, mas não o suficiente para chegar em um dia, então eu tinha que caçar... – fez uma pausa. – Um dia você também vai se acostumar.

- Nunca – respondeu Sarah rapidamente. – Não quero ter que fazer algo tão nojento.

Maya deu uma gargalhada baixa.

- Mas algum dia vai ter que fazer se quiser sobreviver. Assim como também terá que matar.

Sarah sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha só de pensar que algum dia teria de matar alguém. Com o olhar um pouco distante, ela apertou as pedras que segurava de modo que as pontas dos dedos ficaram brancas. Fechou os olhos e balançou a cabeça como se procurasse despertar. Depois começou a batê-las, uma contra a outra, produzindo leves faíscas que saltavam sobre o amontoado de galhos. Havia uma pequena folha em um dos galhos e ao queimar, a chama se prolongou até os outros gravetos e a fogueira se formou.

Feliz, a jovem se voltou para Maya com um leve sorriso estampado no rosto. A pele morena de Sarah ficou branca depois do que viu: a animorfa abrira um buraco na barriga do cervo e à medida que retirava os órgãos do animal, os enterrava. Sarah levou uma das mãos até a boca e se voltou para o lado oposto.

Maya cortou cada pedaço de gordura do cervo, depois fatiou a carne em diversos pedaços grandes. Enxugou as mãos ensangüentadas na roupa, depois retirou a bolsa da cintura e a abriu. Pegou um trapo que guardava nela e o esticou no chão, apanhando a carne e a envolvendo no pedaço de pano. Em seguida, guardou-a na bolsa e empurrou para longe. A animorfa puxou o cadáver do cervo maior e começou a fazer o mesmo que fizera com o anterior.

- Melhor você descansar um pouco, vai demorar pra que a comida fique pronta.

Sarah criou coragem para olhar na direção da mulher.

- Não sei se ainda quero comer – disse ela calmamente.

- Ora vamos, deixe de bobagens – arrancou um grande pedaço de pele e jogou para longe. – Quando chegarmos ao topo da montanha, vai se arrepender de não ter se alimentado.

A garota engatinhou até a parede mais próxima e se encostou. Retirou a pele de tigre que usava nas costas e colocou sobre o corpo, estava cada vez mais frio no alto da montanha e ela já começava a notar que as unhas ficavam roxas. Ao olhar para cima, percebeu um rápido feixe de luz correr pelo céu negro da noite. “Uma estrela cadente!” – pensou. Sarah fechou os olhos desejando que pudesse algum dia, voltar para casa e tornar a ver sua família e amigas.

Abriu-os. “Que bobagem a minha, fazer um pedido para uma pedra que se desintegra na atmosfera do planeta”. Devo estar mesmo desesperada.” – pensava ela enquanto abria um leve sorriso. Suspirou, observando a fumaça branca que saía de seus lábios. “Puxa, está mesmo frio aqui”.

Quando finalmente terminou de cortar a carne em pequenos cubos, Maya pegou um dos gravetos que queimavam na fogueira e, com pequenas batidas no chão, apagou a chama. Depois espetou a carne nele e colocou sobre o fogo. Seus olhos azuis brilhavam ao observar, constantemente, o crepitar das chamas. Ela estendeu o braço ferido. Apesar de ter tratado do machucado com ervas medicinais, ainda assim ardia muito e a escalada só havia piorado a dor.

- Sarah – disse ela estendendo o graveto com a carne assada. – Coma.

A jovem observou a comida. Mesmo depois de ter visto como Maya tratava da carne, a maneira com a qual a mulher arrancava a pele do pequeno animal para que pudesse servir de alimento para elas. Ainda assim não perdera o apetite. Estava exausta e seu estômago roncava como nunca. Deu uma mordida na carne mal passada, estava bem quente pois estivera em contato direto com as chamas, mas queimar a língua não era nada perto da fome que sentia.

Mastigando de forma selvagem e engolindo o mais rápido que podia, Sarah notou que a animorfa estava de frente para a fogueira com as mãos estendidas de modo que as aquecesse. Sua expressão era impassível e despreocupada. Ela observava as chamas envolvendo a carne que colocara na fogueira. Os olhos azuis, que faziam força para se manterem abertos, brilhavam mais do que nunca. De certa forma parecia cansada. O olhar de Maya se voltou para Sarah.

- O que foi?

- Nada – disse a jovem engolindo o pedaço de carne. – Só estava me perguntando como você vai se aquecer. Já que me deu sua capa.

- Não se preocupe com isso – respondeu ela ensaiando um sorriso. – Posso virar um animal que possa se aquecer lembra?

- Como uma ovelha?

- Engraçadinha – disse ela dando uma risadinha sarcástica. – Por que não tenta dormir?

Ao terminar de mastigar o último pedaço de carne, Sarah deitou de forma lenta e puxou a capa de tigre até o pescoço. Seus olhos ardiam, os pés ainda estavam dormentes e o frio aumentava ainda mais sua exaustão. Bastou fechar os olhos e a jovem caiu em um sono profundo. Sem pensamento algum, apenas uma escura imensidão e uma sensação relaxante incomparável.

- Vraldres (não demorou) – murmurou Maya.

Ela retirou a carne do fogo e observou o céu enquanto dava uma mordida. Nuvens acinzentadas que revestiam a abóbada celeste ausente de estrelas, davam-lhe um ar sombrio. A lua cheia estava completamente visível. Maya engoliu a comida de forma vagarosa enquanto fechava os olhos e sentia o vento frio beijar-lhe o rosto. Era uma sensação muito boa para quem passara o dia inteiro escalando uma montanha e sendo castigada pela fadiga e pela sujeira que estava impregnada em todo o seu corpo. Após alguns minutos, quando finalmente conseguiu terminar de comer, ela se deitou e adormeceu.

Quando a aurora tocou a montanha, a animorfa levantou lentamente enquanto erguia os braços, emitindo um som de satisfação. Não muito longe dela, Sarah dormia tão profundamente que parecia estar morta. Maya balançou a cabeça e pôs-se de pé. Colocou a mão sobre o ombro da jovem, agitando-o para que ela acordasse, mas não teve resultado. Pegou o cantil preso à cintura, abriu-o e jogou um pouco da água sobre o rosto de Sarah que deu um salto.

- Hora de acordar – disse a animorfa sorrindo.

- Que modo de acordar alguém – disse Sarah enxugando o rosto com as costas do braço. – O sol ainda está nascendo.

- É a hora perfeita, vamos, levante!

Naquele momento, a jovem sentiu uma vontade tremenda de saltar sobre o pescoço de Maya. Como se não bastasse terem passado o dia inteiro caminhando e ainda por cima dormirem tarde. Acordar quando o sol ainda nascia aumentava ainda mais sua exaustão. Sarah mal conseguia abrir os olhos, mas conseguiu ficar de pé e vestir a capa de tigre, esfregando o peito na esperança de se manter aquecida. Ela deu leves tapas nas bochechas enquanto arregalava os olhos, tentando desembaçar sua vista cansada.

- O que está esperando?! – a voz de Maya ecoou.

A animorfa estava já estava no alto e a forte neblina que envolvia o pico da montanha, começava a esfriar seu corpo. Sarah levou um susto, perguntava à si mesma como alguém poderia ter tanta disposição. Caminhou até a brecha da montanha de forma vagarosa e começou a escalar. Maya estava parada, apenas aguardando que a jovem a alcançasse, o que não demorou mais do que alguns minutos.

Sarah sentia suas mãos começando a suar e ficou com uma vontade imensa de olhar para baixo, mas o medo do que poderia acontecer a segurou. À medida que escalava, a jovem sentia que a temperatura despencar assustadoramente. Estava terrivelmente frio. As juntas dos seus dedos começavam a pinicar era como se pequenas agulhas furassem sua pele. A impressão que ela tinha era que, aos poucos, perdia o movimento dos dedos. Estava sem força para se segurar.

A carne, sob suas unhas, estava roxa. Já se encontravam a mais ou menos seis metros de altitude se contados do local onde haviam parado pela última vez. Ela sentia como se suas energias estivessem sendo drenadas por causa das pontadas espalhadas por seu corpo. Pressionou o corpo contra a parede da montanha, segurando com toda a força que ainda lhe restava, seus lábios roxos tremiam e os olhos reviravam involuntariamente.

- Sarah? – chamou a animorfa ao notar o jeito estranho da companheira.

O corpo inteiro pinicava e a jovem sentia como se suas energias estivessem sendo sugadas. O ar gelado que invadia seus pulmões tornava cada vez mais incômoda a tentativa de respirar. Não agüentava mais. Aos poucos, suas mãos começaram a soltar a parede e seus olhos se fecharam.

- Não faça isso Sarah! – berrou.

Em uma fração de segundos, Maya saltou e agarrou o braço da jovem ao mesmo tempo em que retirava sua adaga, enfiando-a em uma brecha na montanha. As duas agora estavam penduradas e qualquer movimento em falso resultaria em uma morte terrível. Sarah teve uma vertigem ao abrir os olhos e não conseguia se mover, nem se quisesse. A animorfa olhou ao seu redor ignorando o incômodo, que uma gota de suor em seu rosto, trazia.

- Consegue se segurar? – indagou.

- Posso tentar – ela respondeu.

- Muito bem, vou balançá-la até ali e você vai tentar se segurar. Pronta?

- Quando quiser.

Maya apertou a adaga e começou a balançar o corpo de Sarah. Ao soltar, com um rápido movimento, a jovem se agarrou à parede da montanha. A tenção tinha sido tão grande que seu corpo agora estava mais aquecido, pelos breves segundos que correram no momento em que esteve no ar, achou que iria morrer.

- Não importa o quanto o frio tente te derrubar, não se deixe vencer ou estará morta – disse a animorfa em um tom de voz grave.

O dia demorava mais a passar, os minutos pareciam horas até finalmente chegaram ao topo da montanha. O frio lá era ainda mais insuportável. Grossas camadas de neve formavam um tapete branco que se estendia por toda parte. Nevava muito e o ambiente era úmido por causa da neblina que envolvia o pico da montanha. Maya Entregou sua bolsa à Sarah e se transformou em uma raposa do ártico, a cauda era felpuda e seu pêlo tão branco quanto a neve, deveria ter entre cinqüenta e sessenta centímetros.

- Por aqui – disse ela começando a caminhar.

Após alguns metros, o animal estava completamente camuflado. A única coisa que Sarah identificou foram os olhos azuis que se voltaram para ela. A jovem seguiu o quadrúpede que se movimentava graciosamente sem nem mesmo afundar naquela neve tão densa. Ela apertou as abas da pele de tigre contra o peito, procurando se aquecer. O vento urrava e sua respiração estava bem mais acelerada do que durante a escalada, era como se tudo o que seu corpo fazia fosse uma tentativa de se manter aquecido. A raposa do ártico ergueu o focinho, movendo-o de um lado para o outro.

- Vamos descansar aqui.

- Minhas três palavras preferidas – disse Sarah. – Não há nada aqui que possa fazer uma fogueira, como vou me aquecer?

- Não se preocupe.

A animorfa se transformou em um tigre da neve e se aproximou da jovem.

- Sente-se – Sarah obedeceu.

Maya andou em círculos, deitando-se atrás da garota.

- Eu a manterei aquecida. É só deitar sobre mim.

À medida que o tempo passava o ambiente ficava cada vez mais suportável. O pêlo da animorfa era quente e de certa forma, logo conseguiram dormir. Várias vezes durante a madrugada, o sono de Sarah era interrompido pelo som aterrorizante que vento produzia. Quando despertou pela quarta vez, decidiu se levantar. Seus lábios estavam roxos e tremiam de forma rápida. Ela estendeu a mão e balançou o corpo do tigre das neves.

- Agora é a minha vez de acordar você – disse Sarah, sorrindo. – Vamos Maya já descansamos o suficiente.

O animal deixou um ronronar, um tanto alto, escapar, e aos poucos voltou para a forma de raposa do ártico. Maya cambaleou um pouco até finalmente estar acordada. Ela farejou o ar e começou a caminhar, com Sarah em seus calcanhares. Após algumas horas a jovem começava a sentir certa impaciência, revirando os olhos enquanto observava as pegadas profundas que deixava na neve.

- É ali – disse Maya.

Sarah fez uma pausa, apertando os olhos na tentativa de ver alguma coisa. A neblina se afastava, dando um pequeno espaço, onde uma ponte de madeira podia ser avistada. Ela abriu um sorriso e começou a correr, de certa forma era bastante difícil, suas coxas começavam a latejar, mas a vontade de encontrar cama e comida quentinha era muito maior. Correr na neve era muito mais difícil do que correr na areia da praia, definitivamente.

- Espere Sarah! – berrou a animorfa enquanto tentava alcançar a garota.

Ao chegar à ponte, a jovem ficou mais cautelosa, colocando um pé na frente do outro de forma vagarosa. Era uma daquelas pontes frágeis e bambas que um passo em falso resultaria em morte na certa. A jovem pôde ver que a entrada da cidade se parecia com um forte. Seus muros eram feitos de uma madeira bem resistente e no final delas haviam pontas bastante afiadas, que lembravam estacas. No topo dos portões – feitos do mesmo material do muro – havia duas torres de vigilância onde guardas vestindo um punhado de roupas felpudas, seguravam enormes lanças.

Sarah estava boquiaberta com o tamanho daquela construção, no meio do nada. Não demorou muito para que Maya a alcançasse, ela se aproximou da entrada e um homem coberto da cabeça aos pés atravessou os portões, indo de encontro as duas. Ele caminhava cautelosamente com a ponta da lança virada para elas.

- Se quiser fazer com que os Curiors gostem de você, seja uma boa aprendiza. – sussurrou Maya.

- Alto!Quem vem lá? – indagou o homem.

A animorfa voltou a as forma humana com um sorriso estampado no rosto.

- Pelos deuses! – disse ele abaixando a lança. – O que quer aqui Maya? – indagou rispidamente.

- Também estou feliz em ver você Rhotur – ela respondeu enquanto voltava à forma de raposa do ártico. – Viemos aqui porque Sarah precisa treinar...

- Não treinamos qualquer um e você sabe disso!

- Mas ela não é qualquer uma. É a nova Esbael.

Por causa das roupas, Sarah não pôde identificar a expressão no rosto do homem, mas o silêncio indicava enleio.

- Como saberei se está falando a verdade? – disse ele calmamente.

Sarah afastou a pele de tigre que cobria seu pulso e caminhou em direção a ele. Rhotur olhou para os homens na torre de vigilância e assentiu para que abrissem os portões, ele olhou para as duas e enquanto estendia a mão em direção à cidade disse:

- Bem vindas à Teralar.

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